quarta-feira, 4 de julho de 2012

Religião e futebol: tem diferença?


Ouvimos dizer correntemente que futebol e religião não se discute. Pois bem, esses dois grandes universos que regem a alma brasileira têm muita coisa em comum. Vamos conversar um pouquinho sobre isto, olhando a partir da bola.
O futebol tem algo de místico. Acredito que de todos os esportes é aquele que mais arrebata sentimentos. Arraigado no profundo do ser humano, o futebol extrapola as noções da própria razão. Parece lidar com o elemento fé. Esta é o motor que move seus fiéis. Quem torce por um time, acredita em uma espécie de divindade. O futebol é algo que não se explica somente pelas leis físicas de causa e efeito. Não é apenas chute, defesa e gol. Não é somente uma questão de ganhar ou perder, algo natural da vida. O futebol está em um nível equiparado ao da religião.
Dependendo do grau particular de devoção, torcedores de um time podem sublimar uma perda ou partir para atos radicais. No futebol, há extremistas. Extremistas matam. Matam porque alcançaram um nível de intolerância máxima. Parecem estar acima de perdas e fracassos. Porém, mesmo aqueles mais comedidos podem cometer crimes. Nos estádios, a fé é algo coletivo. A simpatia é plena para quem defende a mesma camisa. Homenzarrões anônimos podem se abraçar e compartilhar a alegria dos gols. Mas a antipatia também é natural. Quem não é do time, nasceu persona non grata. Todo cuidado é pouco.
Futebol tem ídolos. Verdadeiros semideuses. No Brasil de muita pobreza, a coletividade parece não se importar com salários milionários. Ninguém clama por essa “injustiça” social. Não. “Eles merecem”: é a aprovação tácita do povo. Jogadores de futebol estão no nível de grandes religiosos brasileiros e mundiais. Muito dinheiro. Podem viver em mansões. Palácios. Tronos de ouro. Todos se quedam perante essas figuras de aura iluminadas. É um brilho que só os fiéis de cada grupo conseguem enxergar. Quem está de fora, pode pensar diferente, mas isso não mudará a direção do séquito. Futebol e religião não se discute.
A alma do povo brasileiro é religiosa. E se, na religião se canta, no futebol também. Todo time tem o seu hino. Tombamento sagrado. Ouvi-lo é respirar outro mundo. É subir o Olimpo em forma de bola. Poucas poesias conseguem se eternizar tanto. Marchinhas triviais ganham valor de arte clássica. É música para vencer. Triunfalista. Memorial. Arrebatadora. Abecedário dos nascituros. Canção de jovens e velhos.
Futebol também tem bandeira. Flâmula sagrada, que provoca sentimentos incompreensíveis. Igualmente, o mundo da bola tem seus templos. Estão entre as grandes construções brasileiras. É onde se gasta muito dinheiro. Onde esse tipo de fé ganha dimensões inatingíveis à compreensão. Partidas de futebol têm natureza de culto. De cada lado, cada qual busca a prosperidade de sua crença. Se o São Paulo é o melhor, jamais será aceita uma derrota. Não tem explicação para isso. Ninguém pode ser maior. Pode acontecer de algum agente em campo não se esforçar o necessário. Explica-se, então, pela falha de alguns de seus agentes “divinos”. Precisam logo serem trocados. O nome do clube? Nunca. Podem até trocar todo o elenco, técnicos e diretoria. Incrivelmente, novos homens serão ainda o mesmo time. Realmente, só existe mesmo o nome. Uma bandeira e um hino.

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RUI RAIOL é escritor
www.ruiraiol.com.br

Um comentário:

Tereza Jardim disse...

Lembrando que o futebol não está arraigado no profundo do ser humano, mas apenas daqueles seres que gostam do esporte.

Só para ilustrar, a grande maioria dos milhões de americanos considera o futebol (soccer) um esporte para meninas. Lá, o que está arraigado é o futebol americano, o beisebol e até mesmo o hóquei.

Dito isso, eu sou uma das torcedoras não-fanáticas, emocionada atualmente apenas pelo Paysandu e pelo Boca Juniors, ignorando solenemente a seleção canarinho =)