quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Transação irregular "até onde a vista alcança" é suspensa

Reparem só.
No dia 30 de junho deste ano, o Espaço Aberto fez os seguintes questionamentos:

Isso é acordo?
Em que bases se ampara?
Quais as suas repercussões para as finanças do município?
Quais os termos de um acordo político-eleitoral que afeta diretamente os cofres públicos?
A Justiça vai homologar?
Para homologar, acredita-se que será necessário ouvir primeiro o Ministério Público.
O MP será ouvido?
Se ouvido, concordará?
Afinal de contas, pode um acordo desses?
Pode mesmo?

O blog fazia referência a um acordo.
Ou, se quiserem, fazia referência a um acerto de contas eleitoral.
Envolvia mais de R$ 200 milhões em renúncia de ICMS por parte do Município em favor do Estado.
O Município, no caso, representado (putz!) por Duciomar Costa (PTB), o Huno. O Porcino Huno.
O Estado, no caso, era encarnado por Sua Excelência a governadora Ana Júlia Carepa (PT).
Ela queria o apoio dele para se reeleger.
Ele disse que a apoiaria, desde que recebe cotas atrasadas do ICMS.
Ela aceitou.
Mas ele teve que abrir mao de valores estratosféricos.
Ele e ela transacionando com o nosso dinheiro.
Ele e ela, ela e ele dizendo para o distinto público que fazim aquilo para o bem do povo e felicidade geral da Nação, ou melhor, do Estado.
Ele e ela, ela e ela, negando-se a dizer que suas inspirações era puramente de eleitorais.
Pois o advogado Ismael Moraes não ficou apenas no questionamento.
Ele também questionou.
Mas o fez na Justiça.
Ingressou com uma ação cautelar.
O juiz Marco Antonio Castelo Branco, da 2ª Vara da Fazenda Pública de Belém, concedeu ontem uma liminar.
E suspendeu os efeitos do acordo.
Suspendendo-o, disse coisas assim:

A transação extrajudicial realizada entre os dois entes públicos está eivada de irregularidades até onde a vista alcança.

Ou assim:

Cuida-se de um cheque em branco a ser descontado pelo Prefeito sem critérios claros em que o Estado do Pará faz um repasse como se a um particular fosse, ou seja, como se não estivesse submetido aos rigores legais da transferência de valores a outro ente federativo.

Ou ainda assim:

Por que afinal, a transação não foi realizada em audiência pública (no sentido de publicidade) com a participação do Ministério Público a fim de que as dúvidas fossem extirpadas?

Leiam abaixo, na íntegra, a decisão do magistrado.

-------------------------------------------

R.H.
Cuida-se de Ação Cautelar preparatória de Ação Popular impetrada por ISMAEL ANTONIO COELHO DE MORAES em face de ANA JÚLIA VASCONCELOS CAREPA e DUCIOMAR COSTA.
Aduz na inicial que o Município de Belém propôs ação judicial com o objetivo de corrigir a fixação feita pelo Estado do Pará, do coeficiente de participação do Município Autor, na divisão do ICMS, nos exercícios financeiros de 1997, 1998 e 1999, divisão esta que não teria obedecido aos parâmetros e ditames estabelecidos pela Constituição Federal de 1988 e pela lei Complementar n° 63.
Informa ainda, que os valores atualizados da cobrança chegam aos R$400.000.000,00 (quatrocentos milhões de reais), entretanto, que os dois governantes, o atual prefeito da capital e a governadora do Estado, decidiram transacionar através de escritura pública a dívida cobrada em juízo, sem que para isto tenham sido observados preceitos legais e constitucionais.
Requer liminar.
Passo à análise do pedido liminar.
Em primeiro lugar dou por citada a Sra. Ana Júlia Carepa, tendo em vista que quem recebeu a citação foi o Procurador Geral do Estado, pois embora a ação não tenha sido proposta contra o Estado não resta dúvidas que aquela agiu enquanto governadora praticando atos de gestão que repercutem na esfera administrativa. A citação foi recebida em 20.09.2010. O Sr. Duciomar Gomes da Costa foi citado em 04.10.2010. Reforço desde já que por força do que dispõe o artigo 241, II do Código de Processo Civil o prazo para apresentação de contestação começou a fluir em 12.11.2010, portanto, as partes ainda se encontram dentro do prazo para defesa preliminar.
Inobstante tal consideração, entendo que tenho elementos suficientes para deliberar desde já a respeito da liminar requerida e passo a fazê-lo neste instante com base nos documentos acostados aos autos até o momento.
A transação extrajudicial realizada entre os dois entes públicos está eivada de irregularidades até onde a vista alcança.
A primeira delas diz respeito ao fato de que a pessoa jurídica de direito público não está autorizada a fazer tais acertos extrajudiciais dessa monta sem autorização legislativa. Tal transação é nula, ou seja, não está apta a gerar os efeitos pretendidos, especialmente em caso de sua declaração de nulidade, não correndo a prescrição e não podendo ser cobrada por eventuais credores, inclusive terceiros que negociarem com o credor nos termos da incompreensível cláusula sexta que afirma expressamente estar o município de Belém autorizado a ceder, total ou parcialmente, o crédito decorrente da presente transação sem qualquer interveniência e/ou participação do Estado do Pará, subrogando-se o cessionário em todos os direitos e deveres do Município de Belém decorrente da vertente transação.
A rigor o ato é mesmo inexistente, entretanto, exige a declaração expressa de nulidade, gerando efeitos apenas e tão somente em relação aos terceiros de boa-fé como demonstrarei mais adiante.
Quanto à cláusula sexta, cuida-se de um cheque em branco a ser descontado pelo Prefeito sem critérios claros em que o Estado do Pará faz um repasse como se a um particular fosse, ou seja, como se não estivesse submetido aos rigores legais da transferência de valores a outro ente federativo. Ou será que por tratar-se do pagamento de uma dívida, esquece que na realidade está tratando de transferência de valores oriundos do crédito de repasses constitucionais devidos?
Sendo assim, repito que ainda que tal cláusula fosse posta em prática com terceiros, nenhuma garantia há para o cessionário, pois o acordo é nulo.
É o que se pode observar da decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial n° 1.199.884 – BA (2010/0085440-9), julgado em 24.08.2010 e publicado no DJe de 08.09.2010, cuja relatoria é da Exma. Sra. Ministra Eliana Calmon.
O acórdão mencionado cuidou de afirmar a certa altura que :3. Inviável o reconhecimento da prescrição no caso em apreço, em razão da decretação de nulidade do termo de transação entre o município de Camaçari e empresa particular, por vício insanável, relativo à ausência de aprovação da Câmara Municipal na formação do referido título.
Ou seja, a eminente Ministra prossegue em seu voto afirmando que é importante destacar que a existência de ato administrativo ilegal não significa ausência de efeitos. Primeiro porque o ato, mesmo nulo produz todos os efeitos, até a declaração; segundo porque ficam protegidos os terceiros de boa-fé, com possibilidade de indenização, nos casos em que ficar demonstrada a boa-fé e quando o administrado tenha constituído despesa ou realizado investimento, com o fim de evitar o enriquecimento ilícito.
Portanto, observe-se que neste julgamento por unanimidade, embora tenha reformado a parte do acórdão que tratava da interpretação a respeito da prescrição, manteve o fundamento do julgado no sentido de que a transação entre a pessoa jurídica de direito público e o particular era nula diante da ausência de autorização legislativa.
No caso em comento, embora se trate de duas pessoas jurídicas de direito público, tal preceito se aplica e com maior rigor.
Em primeiro lugar, porque cuida-se do pagamento da quantia de R$162.000.000,00 (cento e sessenta e dois milhões de reais) em menos de 09 (nove) anos. É um pagamento de uma dívida judicial a ser quitada na boca do caixa, então como prescindir da autorização legislativa diante do montante? E quanto ao Município, quem autorizou o prefeito de Belém a renunciar mais de R$170.000.000,00 (cento e setenta milhões de reais) de uma dívida confessada pelo Estado na escritura e que na realidade pode chegar a uma renúncia de mais de R$230.000.000,00 (duzentos e trinta milhões)? Essas ações judiciais não são titularidades do prefeito ou do governador. São na verdade direitos que interessam ao contribuinte de modo mediato e ao povo em geral de modo imediato. Se o Estado deve de fato o que reconhece, como aceitar que tais valores sejam simplesmente jogados no esquecimento, como se os munícipes fossem meros assistentes de um espetáculo em que a vista não alcança o palco?
Se há duas ações tramitando, por que afinal, a transação não foi realizada em audiência pública (no sentido de publicidade) com a participação do Ministério Público a fim de que as dúvidas fossem extirpadas? Porque a escolha de um frio Cartório de Notas se o acordo poderia ter sido firmado após autorização legislativa e audiência judicial que é pública? Nem tudo o que é legal repousa no espectro da moralidade, e, se tal exigência, tem efeito normativo enquanto princípio, joga as boas intenções no centro da ilicitude.
Por fim, é necessário que se diga que os princípios tem força normativa, especialmente na Administração Pública.
O artigo 37 positiva e vincula o princípio da moralidade na Administração Pública. Isto não é um norte. É a própria nau. É no dizer de Eros Grau que esses princípios, no entanto, só podem ser legitimados a partir da efetiva história dessas formas de vida e de direito nas quais os juízes contingencialmente se encontram.
É verdade que não estamos mais falando de costumes que ainda não se condensaram em normas. Estamos falando de princípio que não está ínsito na norma, mas é a própria norma.
O histórico republicano tem buscado a moralidade na administração pública como uma forma de contemplar a cidadania com o melhor que possa lhe oferecer o Estado. Contemporaneamente recrudesceu a sensação de que é preciso vivenciar esta luta histórica a fim de que se incorpore em nosso sistema jurídico de forma objetiva.
O exemplo dos autos é típico. As evidências sombreiam fatos que mesmo à distância se permite a repulsa do direito e ao direito.
O calendário eleitoral marcava o dia 30 de junho de 2010 como o prazo limite para a realização de convenções destinadas a deliberar sobre coligações e escolher candidatos a presidente e vice-presidente da República, governador e vice-governador, senador e respectivos suplentes, deputado federal, estadual e distrital, tudo na forma lei nº 9.504/97, art. 8º, caput.
O acordo foi lavrado em Cartório em 29 de junho 2010.
Logo após, fato público e notório, ambos firmaram acordo político.
O que se quer dizer aqui é que a moralidade enquanto princípio deve ser observada a partir da história efetiva do princípio na sociedade e no contexto em que se encontra o juiz. Neste caso, não parece coincidência o acordo. Nem se trata de julgar por aparências, mas não há dúvidas que fere o princípio da moralidade uma transação feitas às vésperas da eleição entre aliados políticos reconciliados ou conciliados. É entender o que diz o mestre Inocêncio Mártires Coelho a respeito do princípio da moralidade:
“...Pode-se dizer que a reverência que o direito positivo presta ao princípio da moralidade decorre da necessidade de por em destaque que, em determinados setores da vida social, não basta que o agir seja juridicamente correto; deve, antes, ser também eticamente inatacável” (grifo nosso).
Portanto, não se cuida de achismo. Se cuida de delimitação objetiva do fato de que não é moral transacionar milhões de reais dos cofres públicos às vésperas de uma eleição, máxime entre aliados políticos.
Com essas considerações, tenho que estão presentes a fumaça do mau direito e o perigo na demora na concessão da tutela que ampare o bom direito.
Ante o exposto, concedo a liminar requerida para suspender os efeitos jurídicos e financeiros do acordo firmado entre Estado do Pará e Município de Belém constante da escritura pública de transação extrajudicial lavrada no Cartório Kós Miranda, 6º Ofício de Notas, constante do livro 0550, fls. 128, especialmente da cláusula sexta.
Determino o bloqueio de qualquer operação financeira com base nesta transação, devendo ser oficiado ao Banco Centra a fim de que expeça Aviso ou Carta Circular para que nenhuma instituição financeira faça qualquer operação de antecipação de receitas para o Município de Belém, seja para qualquer outra pessoa física ou jurídica sob as penas de coautoria dos crimes previstos na lei federal nº 10.028 de 2000.
Quanto aos demais pedidos, ficam por ora, indeferidos.
Belém, 16 de novembro de 2010
Cumpra-se.

MARCO ANTONIO LOBO CASTELO BRANCO
Juiz de Direito da 2ª vara da Fazenda Pública de Belém

Nenhum comentário:

Postar um comentário