Perdi nesta quarta-feira (20) um dos meus cunhados para a Covid-19.
Antônio Jorge Alves Bastos.
Era bancário. Tinha 72 anos, mas nem parecia.
Gozava de excelente saúde.
Preservava-se, fazia sempre os necessários exames
de rotina, não relaxava na observância de todas as cautelas para manter-se com a
melhor das vitalidades.
Nos tempos pré-pandemia, caminhava na Doca.
Era um grande pé de valsa. Eu, quando o via
dançar, tinha a impressão de que semicerrava os olhos, desfrutando do prazer de
rodar pelo salão.
Adorava contar histórias.
Contava-as com uma riqueza de detalhes
impressionante, sobretudo quando se lembrava com saudades do Despachado, a
fazenda que meu sogro teve na região do rio Ituqui, entre Santarém e Monte Alegre, no oeste do Pará.
Descrevia paisagens, mencionava datas e nomes de
dezenas de pessoas – sobretudo dos trocentos
parentes -, recordava-lhes os hábitos, relatava aventuras, tudo.
Era uma espécie de memorialista da família – com
uma ótima memória, como convém aos memorialistas.
A última vez que o vi com sua esposa, minha
amiga Ivete, foi no dia 26 de janeiro deste ano, nos festejos de 60 anos de
minha mulher.
Quando que alguém de nós poderia, naquela noite,
imaginar que ele nos deixaria quatro meses depois?
Vivemos uma tragédia, meus caros.
Devemos – ou deveríamos – estar conscientes
disso.
Vivemos uma tragédia sanitária de dimensões
inauditas, assustadoras, tenebrosas, horrorosas.
Nas tragédias, sobretudo nas que ceifam vidas,
milhares de vidas, chega-se a um ponto em que começamos a ler, ver e ouvir
números todo dia, a todo minuto, a toda hora.
E vamos reagindo diante dos números – de
infectados, de mortos – como se isso fosse a coisa mais banal do mundo.
Até que se vai um amigo, um vizinho, um colega
de trabalho.
Até que se vai um familiar.
Aí tudo muda.
Quando números viram rostos, quando números
viram nomes que nos são próximos, a tragédia assume outros contornos.
Odeio matemática. Mas consigo me salvar fazendo
as quatro operações, a regra de três, essas coisas básicas.
Fiz umas contas, para transformar essa tragédia
familiar em números.
Em relação aos 162 mortos no Pará de Covid-19, segundo dados oficiais da Sespa
colhidos até ontem, Jorge representava 0,617283950617284%.
Em relação aos 17.983 mortos no Brasil inteiro,
Jorge equivale a 0,0055608074292387%.
Em relação às 323.286 de vítimas fatais em todo
o mundo, até esta data, ele representa 0,0003093236329442042...% (e
outros dígitos).
Se, no dia 26 de janeiro de 2020, alguém
dissesse ao Jorge que, dali a quatro meses, haveria uma pandemia com esta e que
ele teria 0,617283950617284%, 0,0055608074292387% ou 0,0003093236329442042...%
de possibilidade de morrer, ele certamente compararia essa possibilidade à de
um grão de areia, no Afeganistão, ser levantado pelo vento e vir se acomodar no
teto do prédio onde ele morava, no bairro do Reduto, em Belém.
Se dissessem a mesma coisa a mim, eu também
agiria da mesma forma – com descrença quase absoluta.
Se dissessem a mesma coisa a você, provavelmente
também a reação seria idêntica.
Mas acontece.
E aconteceu.
Saudável, plenamente saudável, Jorge contraiu
essa doença provavelmente numa ida a supermercado, piorou, ficou pouco mais de
dez dias numa UTI e não resistiu à devastação que esse vírus deflagrou no seu
organismo.
Esse é um dos milhares de exemplos de que não
vivemos uma pandemia qualquer.
Não vivemos uma pandemia como qualquer outra.
Estamos diante de uma tragédia que tem ceifado muitas
vidas humanas.
Vidas que, perdidas aos milhares, vão se
transformando na crueza, na frieza, na gelidez, na impessoalidade que os
números representam.
Até que os números viram um rosto.
Como o de Jorge.
Viram um nome.
Como o de Jorge.
E aí choramos.
Tomara
que nossas lágrimas molhem e depurem nossas consciências, para que possamos, da
forma menos pior possível, contribuir – até mesmo nos preservando ao máximo –
para que essas dores não se multipliquem.
Este descaso com vidas que estão se perdendo, só acabará quando vidas de poderosos se forem. Estamos perdendo parentes de amigos, parentes, enfermeiros, médicos pela ganância, por politicagem, por covardia. Como não ficar desacretidado com o nosso país por meio a negligência de muitos. Que Deus tenha misericórdia da nossa nação. Meus sentimentos a família Bastos, pela perda irreparável.
ResponderExcluirDescanse em paz, meu primo...não te via desde criança lá em Santarém, os nossos caminhos foram diferentes, mas lembro muito de você...siga com Deus!
ResponderExcluirTambém sou amante da dança e por diversas vezes nos encontramos pelos bailes da vida. Descanse em paz colega.
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