segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

"É possível, sim, fazer merda e fazer grandes maravilhas"

Chico Buarque: ele deixa de ser um gênio da música brasileira por ser, ideologicamente, um troglodita?
Matérias das mais interessantes, atuais e polêmicas abriu o Segundo Caderno de "O Globo" de sábado (13).
Assinada pelos repórteres Emiliano Urbim e Eduardo Graça, a matéria discute, essencialmente, o seguinte: como lidar com a obra de artistas cuja postura condenamos? Podemos separar criador e criação? Devemos? 
Essas questões sãos mais relevantes diante dessa onda - de dimensões tsunâmicas - em que casos de assédio sexual, muitos deles ocorridos há vários anos, estão sendo revelados agora e depõem contra a integridade moral de produtores, atores, escritores, apresentadores de TV e outras celebridades.
A matéria cita, de forma emblemática, Woody Allen.
Nos anos 1990, quando era casado com Mia Farrow, ele trocou a mulher pela jovem Soon-Yi Previn, filha adotiva da atriz. Anos depois, Dylan Farrow, filha adotiva de Mia e do próprio Allen, acusou o pai de ter abusado sexualmente dela quando tinha 7 anos. O diretor negou. No ano passado, Ronan Farrow, outro filho de Mia, publicou na revista “New Yorker” a reportagem que que confirmou as acusações da irmã, levando o caso Allen ao tribunal das redes sociais.
Outro caso, que a matéria não cita, mas que o Espaço Aberto destaca por envolver o posicionamento político de certas pessoas: Chico Buarque de Holanda.
Chico faz versos de arrepiar - corações, mentes e sentidos -, ora pelo lirismo, ora pela sutileza com que é capaz de sugerir que o país vive numa ditadura, das brabas, sem dizê-lo escancaradamente, como ocorreu com suas composições durante a ditadura militar, nos anos 1960-1970.
Mas esse Chico Buarque é o mesmo, por exemplo, que se apresenta como o primeiro a apor sua assinatura em abaixo-assinados em favor de regimes odiosos, sanguinários e assassinos, como o de Cuba, que matou centenas de milhares de pessoas e manteve sob a mesma selvagem censura toda a intelectualidade cubana. A mesma censura que Chico censurou por aqui, quando se opôs à ditadura militar direita, também odiosa, sanguinária e censória.
Apresentados esses dois casos, indaguemos: temos - ou devemos - desconhecer e passar a odiar as obras de Woody Allen e Chico Buarque, porque eles, em suas condutas pessoas, fizeram ou fazem, a nosso juízo, coisas detestáveis?
O repórter particularmente, já disse aqui, que vêm em Chico Buarque um imbecil político. A propósito, leia a postagem Chico: o artista admirável e sua imbecilidade ideológica, postada aqui em janeiro de 2016.
Mesmo assim, não tenho como deixar de considerar Chico Buarque um dos mais geniais compositores brasileiros em todos os tempos. E já estou até pensando em que encontrar um espaço na agenda pra assistir algum show da turnê dele, neste ano.
E Allen? Já vi todos os seus filmes. E quero ver outros tantos. O que não me impede que ter feito o que fez - e ainda que ele negue - seja odioso.
E Gary Oldman. Sua atuação em O Destino de uma Nação , é simplesmente fantástica, soberba. Mesmo que ele já tenha enfrentado acusações - não comprovadas - de assédio sexual.
Não é assim que tem de funcionar?
Ou nós, quando entramos numa livraria e escolhemos um livro, devemos primeiro pesquisar o nível de pureza d'alma do autor ou autora?
Quando queremos ir assistir a um filme, precisamos antes saber se atores, produtores e diretor já estão no panteão dos heróis imaculados ou se cometeram deslizes há um ano ou há 30 anos?
Putz!
"Um artista sem defeitos deve ser chatíssimo na vida real e só por acaso poderá produzir algo relevante. É possível citar cem grandes nomes com graves defeitos de caráter ou comportamento. Talvez, sem esses defeitos, eles não fossem quem eram. Donde, com todo respeito, é possível, sim, fazer merda e fazer grandes maravilhas", diz, na matéria de "O Globo", o jornalista e escritor Ruy Castro, que discorda frontalmente sobre a necessidade de cobrar-se “certificado de bons antecedentes” de um autor.
Ruy tem razão: "É possível, sim, fazer merda e fazer grandes maravilhas"
É mesmo.

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