quarta-feira, 2 de setembro de 2015

Coisas de um menino pobre



Menino, vai até o mercado comprar peixe. Quero um peixe grande e barato. Traz o troco direito. A voz da minha mãe impunha respeito, pra não dizer muito medo mesmo, afinal de contas não tínhamos muita coisa em comum, exceto aquele antigo cordão. Corri para o mercado de Vigia por volta de cinco da tarde. Idade? Oito anos.
Não foi difícil arrumar a encomenda. Chegando à salgadeira, como chamávamos o piso de madeira onde de noite montanhas de peixes eram salgados, avistei uma espécime única. Peixão. – Quanto custa, senhor? perguntei, sem indagar mais nada. – Custa tanto, respondeu o homem, levando-me a calcular rapidamente o troco que levaria pra casa. – Eu quero! Paguei, e comecei o caminho de volta, árduo caminho, pois o peixe era tão grande que eu não conseguia carregá-lo com facilidade.
Bastava seguir uma reta. A rua que saía do mercado chegava à casa da mamãe, exatamente no ponto extremo. Lá vou eu, feliz da vida, arrastando o peixe. Mas a felicidade de pobre dura pouco, sempre ouvia esse agouro. E não deu outra. Entrei pela cozinha para não estragar a surpresa. Quando mamãe avistou o peixe, ficou possuída de todos os ódios: – Não quero esse peixe! O que tu compraste, pequeno? Por que compraste esse cará-açu? Completamente transtornada de raiva, ela arrancou o peixe da minha mão e jogou o bicho pela janela da sala, alcançando a beira da vala do outro lado.
Corri rápido para recuperar a encomenda, sacudi a terra do peixe e comecei o caminho de volta. Estava morrendo de medo, mas a ordem era desfazer a compra. Fui buscar reforço. Andei mais uns quarteirões e compartilhei o drama com a minha avó materna, que, solidariamente, foi comigo até o mercado. Agora eram dois carregando o enorme peixe. Com um pedaço de cabo de vassoura atravessando a cabeça daquele jantar rejeitado, lá íamos nós torcendo para encontrar o peixeiro. Que peixeiro, que nada! O homem já devia estar de boa em casa. O jeito foi pegar a reta de novo.
Minha tia Branca, que, sentada à porta de casa, vira-me passar da primeira vez, ficou agora encabulada: “Meu Deus! O que o Rui faz com esse peixe do mercado, se ele acabou de passar aqui? E a mamãe... o que ela tá fazendo agora com ele?” Bem, uma parada para explicar tudo e prosseguir. A noite estava chegado quando, enfim, chegamos de volta. A presença da vovó evitou-me mais danos, porém, não acalmou a mamãe furiosa. Ela não queria o peixe de jeito maneira, pois, segundo ela, o bicho tem a carne doce. Meu Deus, que desespero! Daqui a pouco, o peixe ia estragar. Caso sem solução.
Mas Deus vela pelos pequeninos. Apareceu uma alma bondosa. Não sei o nome, só o apelido. Era chamado de Bacurau, o qual, vendo toda a cena que a mamãe fazia, resolveu revelar seus apetites: eis o peixe preferido do Bacurau. Graças a Deus! Bacurau comprou o peixe e eu me livrei do pior.
A pobreza tem seus gracejos. Lembro das várias ocasiões em que em casa nem peixe doce nem salgado. Fome. Jejum total. Pra completar, eu estudava no horário intermediário, entrando cerca de onze e saindo às duas da tarde. Azul de fome. Meus colegas vigienses desfilavam o cardápio: “Hoje, vou comer carne!”, dizia um. “Eu vou comer dourada frita”, respondia outro, até que a pergunta chegava a mim. “Eu vou comer gurijuba com feijão”, mentia eu, falando do meu prato favorito. Em casa, nem farinha. Graças a Deus havia água. Bebia tanto que acho ter ultrapassado essa média dos três quartos.
Nesse tempo, até papagaio me perturbava. Morando com um casal de velhinhos em Macapá, por questão de saúde os dois viajaram. Fiquei só com um papagaio. Não almocei. Não jantei. Pela manhã, acordei morto de fome. Café nem sinal. Nada. Apenas a velha e boa água. Eu estava assim lamentando a sorte na cozinha quando o velho papagaio falou tudo que sabia falar de manhã cedo: “Café! Café! Café!”. Bem, agora fui eu quem ficou irado. “Cala a boca, papagaio! Não tem café pra ninguém”. “Café! Café! Café!”, insistia a ave resmungadora. Foi a gota d’água. Peguei uma vassoura e parti para o ataque. Eu estava descontrolado. Eu tinha quinze anos de fome, mas sempre sobrevivi, agora não dava para ouvir um louro me encher o saco.
O papagaio ficou muito assustado que ganhou o quintal dos vizinhos. Foi difícil recuperar. Tive que pular a cerca. Uma. Duas. Três ou mais vezes. Até que recuperei a confiança daquela ave zombeteira. Voltamos pra casa os dois para lamentar a nossa sorte. Não tinha café. E papagaio tem a carne dura.

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RUI RAIOL é escritor
www.ruiraiol.com.br

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