quinta-feira, 26 de dezembro de 2013
Porrete com prego na ponta
Por MUNIZ SODRÉ, no Observatório da Imprensa
Chocantes, sem dúvida, as imagens fotográficas e televisivas da violência entre os torcedores no estádio de Joinville (domingo, 8/12). Nada disso é novo, porém. A novidade estaria talvez na duração do conflito sob as lentes da mídia, à distância do controle policial, ausente.
Mas foi midiaticamente singular a imagem do indivíduo que agredia o outro desmaiado com um porrete de prego na ponta. Provavelmente ainda mais singular do que a do outro que agredia um inerme com barra de ferro.
A imagem pode ser tomada como uma metonímia do episódio: a parte pelo todo. Um punctum, como nomeia Roland Barthes em seu livro sobre a fotografia (Câmara Clara). O que atrai o olhar é um ponto singular, que ferroa a percepção como uma picada de abelha – ou como um prego. Além disso, há o studium, isto é, as circunstâncias socioculturais da imagem.
Nas imagens do estádio de Joinville, o porrete com prego é o punctum. É difícil ajustá-lo ao dito de Terêncio “nada de humano me é estranho”. Mesmo diante da possível evocação de cenas abomináveis como as execuções nas guerras dos traficantes de drogas, é penoso adequar à consciência normalizada a ideia de que alguém saia de casa para um evento esportivo com uma arma dessas na mão e a expectativa de agredir qualquer um – não sequer alguém que conheça e não goste, mas um qualquer, o aleatório objeto da fúria destrutiva.
Nada a ver
Uma narrativa capaz de ser subscrita por muitos no universo masculino pode lançar alguma luz sobre a questão. É comum a história, sempre reiterada no espaço urbano, das “turmas”, senão das gangues de bairro, formadas por jovens candidatos à prova da virilidade violenta. A gangue é uma reformulação urbana dos antigos bandos rurais, sem plena identificação criminal, mas com a característica dominante de “sujeito coletivo”.
Não se trata exatamente de comportamento de “massa”, e sim das ações pontuais de grupo menor (bando, semelhante à matilha), caracterizado pela formação efêmera e por uma finalidade eventualmente mortífera. Thomas Hobbes já tinha deixado claro que o homem é o único animal capaz de assassinar. Assim é que, para Elias Canetti (Massa e Poder), “a grande maioria dos homens não poderia resistir a um assassinato sem perigo”, ou seja, matariam se estivessem certos da impunidade. Na dimensão coletiva, absolve-se o crime: “Ninguém é delegado como executor, é toda a comunidade que mata”.
Nesse tipo de grupo violento, ninguém se percebe como monstro ou mau caráter, uma vez que o todo formado em “unidade de ação” constitui-se como um indivíduo fortalecido pelo grande número e investido da ambiguidade mental presente nos agrupamentos. Sem motivo aparente, marcam-se duelos coletivos como se fossem confrontos individuais.
Isto sempre existiu com maior ou menor intensidade nas grandes cidades, a depender do potencial dissuasório dos aparatos de controle social. O fenômeno não escolhe lugar único para acontecer – festas, ruas etc. O futebol, em si mesmo, não tem nada a ver com isto. Basta ver a reação de alguns dos jogadores, como o zagueiro do Atlético-PR, que chorou em campo e depôs ao jornal sobre o seu horror: “Vendo esse lance, um ser humano ali, que não tinha como reagir, estava desacordado e eram mais de 20 em cima. E vinham de tudo quanto é lado dando chute no cara. Chutavam a cabeça” (O Globo, 15/12/2013).
Mote antigo
O futebol é de fato apenas o pretexto – reforçado por hinos, camisas, símbolos, bandeiras etc. – para que grupos internos das chamadas “torcidas organizadas” desencadeiem a sua fúria agressiva. Nem é a organização da torcida a responsável pela reserva acumulada de animosidade, mas toda uma série de circunstâncias socioculturais (o studium de que fala Barthes na análise da foto) que dá margem à constituição do coletivo violento.
É inútil buscar determinantes em fatores secundários como dificuldade de transporte público, iluminação precária nos estádios etc. Basta pensar nos hooligans (londrinos) que, apesar das ditas facilidades públicas, descarregam do mesmo modo as suas pulsões destrutivas.
O que há mesmo, em primeiro lugar, é a cumplicidade de um poder instituído e externo ao comportamento de matilha do grupo violento. Sem os cúmplices da cartolagem nos clubes, não existiria a proliferação do número de participantes que traz em si mesma uma autoabsolvição: quanto maior o grupo, maior é o sentimento de impunidade.
Em segundo, há o aspecto da teatralização não-consciente inerente às matilhas humana, cada vez mais espelhada na internet. Narcisicamente, o grupo violento encena por meio das redes sociais a destrudo que não tem coragem de vivenciar em termos individuais. “Teatraliza-se” ali uma comunidade ao inverso, onde o ódio bestial substitui o laço social, onde sádicos e masoquistas se confundem.
Bestialidade é coisa antiga. O deplorável agora é que a sua guarida no futebol brasileiro faça corar de vergonha o rosto público ou, mesmo, seja capaz de fazer chorar um zagueiro em campo.
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MUNIZ SODRÉ é jornalista e escritor, professor titular (aposentado) da Universidade Federal do Rio de Janeiro
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