Garcia Roza, um dos raros escritores policiais brasileiros, põe na boca de seu personagem, o delegado Espinoza, a observação de que a principal função da polícia no Brasil é não permitir que o terceiro mundo invada o primeiro.
Estes dois Brasis vêm-se tornando mais nítidos ultimamente, e a imagem do Palácio do Planalto cercado por escudos e tonfas é o melhor emblema do que o escritor quis dizer. Mais sutil, mas não menos simbólico, é o julgamento do mensalão.
Quantos anos, já? E o Supremo Tribunal Federal discute, com doutrina, jurisprudência e juridiquês, a garantia constitucional do duplo grau de jurisdição, ou seja: o direito a um novo julgamento quando a margem de votos pela condenação é estreita.
Deliberadamente se omite a prerrogativa do foro privilegiado que garante a algumas autoridades o julgamento exclusivo pelo Supremo e, no primeiro mundo do judiciário brasileiro, em quase todos os casos a ele submetidos, a impunidade. O mensalão é uma exceção, talvez pela extensão do dano causado, talvez pela escala de corrupção que envolve. No entanto, o foro privilegiado, que permitiu a todos os acusados não passarem pelas salas de espera de um fórum qualquer, agora é considerado também insuficiente. Quantos anos, mais?
O julgamento revela o sistema. E o sistema é perverso.
Há aproximadamente 200.000 pessoas presas sem julgamento no Brasil, quase a metade da população encarcerada. Elas suplicam por um julgamento que lhes fixe a pena ou reconheça sua inocência. Os doze do mensalão já tiveram o seu. Não lhes basta: acabam de conseguir mais uma dilação para começarem a cumprir penas, que não podem mais serem reduzidas, de até 14 anos de prisão. O peso e a medida são diferentes no primeiro e no terceiro mundos do Judiciário brasileiro.
Há mais de 500 ações penais envolvendo políticos com foro privilegiado esperando julgamento pelo Supremo. Entre 2007 e 2010, o Supremo julgou 132 ações – com apenas seis condenações – o que resulta em 33 por ano, em média. Serão necessários mais de 15 anos para julgar só o que falta. E este é o sentido do foro privilegiado, embora mascarado pelo argumento invertido: se corressem todas as instâncias, os processos não terminariam nunca, alegam os defensores do privilégio. Mas, no privilégio do Supremo, são poucos os que terminam.
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Problema do sistema ou problema nosso? É fácil lançar as culpas nas generalidades: o sistema, o povo, a lei. No entanto, temos uma legislação considerada civilizada. A questão é o que fazemos – ou não fazemos – com ela. Nossas leis são de primeiro mundo, mas vivemos no terceiro. Esse conflito, percebido por Garcia Roza na sua manifestação mais dramática, que é o crime e seu combate, permeia tudo: simplesmente, da Presidência da República ao adolescente que vota pela primeira vez, de uma forma ou de outra se descumpre a lei. À margem da legislação se desenvolveu uma longa prática de dribles e de contornos, quer na administração pública, quer na vida privada.
A lei no Brasil não é uma norma impositiva para todos: quase sempre ela é apenas uma referência, para ser usada quando convier ao interessado. O normal é infringi-la. Assim, a Presidência da República toca suas obras sem projetos e sem licença ambiental – vale para os outros, para si, não. Assim, motoristas amadores tecem teias de comunicação por celular para evitar bafômetros na madrugada. Assim, o dono do bar sobe o som por toda a madrugada e só baixa enquanto a polícia estiver presente. Assim, o administrador burla a licitação. Assim, o gerente do supermercado deixa na gôndola os produtos com validade vencida. Assim, o professor termina a aula mais cedo, todos os dias. Assim, o assalariado recebe em caixa dois, para não declarar imposto e nem pagar a Previdência. E por aí afora.
Essa massa de ilicitudes deriva do fato de que a lei brasileira é absurdamente divorciada da realidade. Temos vergonha de sermos como somos. Então, no papel legal, somos um povo cuidadoso com seu meio ambiente, que combate a corrupção a todo custo, que toma medidas até radicais para respeitar os direitos de todos; somos primeiro mundo. Fora dos códigos existe um terceiro mundo, duro, difícil, violento. Damos nosso jeito: esse jeito pode ser um processo que não termina nunca.
Excelente apreciação.
ResponderExcluirDura verdade.
Vivemos em um "paraíso artificial" bovinamente e que as manifestações de julho/agosto pareciam acordar a indignação hibernada.
Será que adormecemos novamente?