sexta-feira, 26 de julho de 2013

Dois médicos cubanos - uma crônica oportuna


ANDRÉ COSTA NUNES

Conto, à clef, como me lembro, ou me contaram

Era coisa de umas cinco horas da tarde. O mês, fevereiro. O sol já se havia quebrado por detrás de Altamira em busca de agasalho para passar a noite. Era a hora em que a turma começava a descer para a beira do rio. Banho, papo e cana. O Xingu estava mais cheio do que de costume para aquela época do ano. Cedo iria tufar o igarapé e desalojar o Seu Otávio Neri, dono da última casa da Rua da Frente. Era ali a parada obrigatória para o primeiro gole no armazém. Como ainda era ainda cedo, estávamos somente eu, o Pedro da Natalina, o Augusto Mário e o Zé do Mané Paulo. O Zé trouxe a cana, duas ou três garrafas. Cachaça Bem-te-vi engarrafada em Muaná pelo pai do meu amigo Floriano Barbosa. O armazém do Seu Otávio Neri era estratégico, pois como se disse, ficava quase na desembocadura do Igarapé Altamira com o Xinguzão. E tinha porto de lavar roupa nas águas grandes. Mas havia outras vantagens o tal ponto de encontro. Não entrávamos na casa. Ficávamos só no armazém amesendados em cima das caixas de óleo Solarina ou mesmo dos sacos de farinha. Abríamos a garrafa empurrando a rolha para dentro. Aí, para gaiatice do Zé, aparecia o colírio. As filhas do Seu Otávio. Sem que fossem pedidos, já vinham rindo com os copos. A Mocinha, ainda muito nova, mas já um pedaço de mulher, ria com os olhos. Para nós outros, mais velhos, apenas fedelhas.
Ali, em meio à mercadoria que ia abastecer o seringal, esvaziávamos a primeira garrafa tirando gosto com lascas de jabá crua.
Foi nesse momento que o Pedro da Natalina deu com olhos em uma pilha de sacos de açúcar. De tão melados chegavam a pingar. Naqueles tempos, açúcar enxutinho, branco, desses da Capital era muito raro. Tinha-se que imediatamente tirá-los das sacas e botar nas latas. Latas com tampas de pressão. Aquelas umas em que iam as bolachas de soda da Palmeira. E o Pedro olhando e matutando para um enxame de abelhas que cobria o saco de cima. Prestava a atenção em todas e em cada uma. Pouco demoravam pousadas naquela mina doce e já voavam de volta à colmeia. Não sei porque paramos o conversê e pusemo-nos também a olhar as abelhas, quando o Pedro da Natalina saiu-se com essa:
- Mas assim, até eu faço mel.
- André, por onde andas? Estou te procurando há três dias. Chegou a hora. Preciso de tua ajuda.
- Conta comigo, cara, quando?
- Hoje, agora, vem almoçar aqui em casa.
- Mas são sete da matina... tentei ponderar.
- Sei, mas preciso falar contigo antes do almoço, aliás, antes mesmo que eles acordem.
- Eles quem, cara.
- Os médicos cubanos e não me pergunta mais nada, por favor, dá um jeito e vem.
Esse, ”por favor,” já estava demorando. O meu amigo Newton Bellesi faz o gênero correto, afável, gentil e educado. Não era preciso. Ele sabia que eu ia. Devia-lhe a finesa do tratamento de uma doença braba e extremamente dolorosa. Herpes zoster. O que em Altamira chamamos de cobreiro.
Essa história começara havia pelo menos dois meses. Eu já morava no Uriboca, em Marituba, mas nem sonhava com abrir restaurante. Era apenas a minha casa. Um sítio grande, com igarapé e quase totalmente coberto de floresta. E para que não houvesse dúvida havia uma placa com o criativo nome de Sítio do André. Esse negócio de Terra do Meio muito surgiu depois. Eu estava na maloca da beira do rio lendo algum livro desimportante, quando ele chegou com um sorriso nos lábios e uma garrafa de uísque na mão. Não posso dizer que foi de surpresa, pois ele sempre aparecia, desde o tempo em que eu morava na Duque. Abancou-se, pediu copo e gelo e tira-gosto. Não me lembro mais, acho que era queijo com azeite e pimenta do reino. E pão.

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