Francesco Carnelutti foi um renomado advogado italiano (1869/1965). Uma de suas obras, "As Misérias do Processo Penal" (traduzida entre nós pelo também advogado José Antônio Cardinalli), revela-nos um pouco do seu espírito, cujo pensamento tentaremos delinear.
O título trata das mazelas do processo penal. Iniciou pela atuação da Imprensa; passou pelo uso da toga, das algemas e das celas; tratou dos encarcerados, dos advogados e da parcialidade do juiz; relatou a importância de se historiar os fatos e a vida do réu no processo; argumentou da temeridade referente às testemunhas e conclui pela idéia de que a ação penal não termina para o condenado com a saída do cárcere.
Dizia que o processo penal interessava à opinião pública porque os jornais ocupavam boa parte de suas páginas para a crônica dos delitos. Essa ocupação seria uma forma de diversão, porque se fugia da própria vida para ocupar-se com a dos outros: "a ocupação não é nunca tão intensa como quando a vida dos outros assume o aspecto do drama."
Afirmava que não havia forma de incivilidade maior do que a de considerar o homem como uma coisa, o que se dava comumente no processo penal. Sustentava que, para merecermos o título do homem civilizado, seria preciso derrubar a idéia segundo a qual somos diferentes daqueles que estavam encarcerados.
Entendia que a toga usada nas cortes de justiça se assemelhava às roupas militares, porque continha a idéia de divisa. Quem a usava, precisava "distinguir" sua autoridade daqueles sobre os quais esta seria exercida. Ao ver uma pessoa enjaulada numa corte de justiça da Itália, concluiu: "A solenidade, para não dizer a majestade, dos homens em toga se contrapõe a do homem na jaula".
Sustentava que o mais pobre de todos era o encarcerado. Recusava-se a chamá-los de delinqüentes depois que meditou sobre um dos sermões de Jesus Cristo, o qual incontáveis vezes citou brilhantemente em sua obra.
Sobre as algemas e as celas (chamadas de jaulas), disse que "são um símbolo do direito, e por isso revelam a natureza e a desventura do homem. O homem acorrentado é a verdade do homem; o direito não faz mais do que revelá-la. Cada um de nós está fechado em uma jaula que não se vê". E arrematou: "Não nos parecemos com os animais porque estamos na jaula, mas estamos na jaula porque nos parecemos com animais."
Quanto aos advogados, dizia que a experiência deles estava sob o signo da humilhação. Pesava-lhes o direito de pedir quando, na verdade, não se deveria solicitar aquilo que se tem o direito de ter. Afirmou que a soberba é o verdadeiro obstáculo a essa suplica. Escreveu por isso que a advocacia seria um "exercício espiritualmente salutar". Ensinou que o maior dos advogados "sabe não poder nada frente ao menor dos juízes."
Em relação à parcialidade do juiz, enunciava que a justiça humana seria uma justiça parcial, pois "a humanidade não é senão resolver-se na sua parcialidade". Desse modo, tudo o que se pode buscar é diminuir tal parcialidade e indagava: "Como pode fazer o juiz ser melhor daquilo que é?" Em resposta, preceituava que a única via do magistrado era a de sentir a própria miséria.
Indicava que no processo não se deve fazer apenas a história dos fatos, mas a história do homem, porque somente assim é que se conheceríamos o seu espírito.
Em atenção às testemunhas, firmava que os juristas as classificavam na categoria das provas, junto com o documento. Questionava se tal frieza era necessária, porque o documento é uma coisa e a testemunha é um homem "com seu corpo e com sua alma, com seus interesses e com as suas tentações, com as suas lembranças e com os seus esquecimentos, com sua coragem e com seu medo."
Por fim, argumentou que o encarcerado saído do cárcere acredita não ter mais essa condição, o que seria um engano, porque a sociedade fixa cada um de nós ao passado e exemplifica: "O rei, ainda quando, segundo o direito, não é mais rei, é sempre rei; e o devedor, porquanto tenha pago o seu débito, é sempre devedor."
O mestre italiano ainda postou outras idéias, entre as quais destacamos uma especial, não porque inusitada, mas pela capacidade de fazer refletir todos os operadores do direito: "O perigo mais grave é atribuir ao outro a nossa alma, ou seja, julgar aquilo que ele sentiu, compreendeu, quis, segundo aquilo que sentimos, compreendemos, queremos."
Roberto da Paixão Júnior é especialista em Direito do Estado
imcpaixao@superig.com.br
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