quarta-feira, 2 de julho de 2008

Entre a memória e os algozes

Do jornalista Miguel Oliveira, editor do Blog do Estado, sobre a postagem Para entender a História no - e do - Pará:

O velho Bené, que conheçi desde menino, não precisa ter sua memória defendida pelo Hélio Gueiros, sobre quem o professor Coimbra faz uma revelação surpreendente incluindo-o como um dos algozes do então deputado petebista.
Como contribuição ao debate, encaminho-te artigo sobre a memória de Bené escrito por Lúcio Flávio Pinto e publicado por O Estado do Tapajós para que, assim desejando, postar em teu blog de modo a enriquecer os teus leitores sobre a História do Pará.
Miguel Oliveira

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O caboco que deu vida a um mundo em extinção

Lúcio Flávio Pinto
Editor do Jornal Pessoal e articulista de O Estado do Tapajós

Em 1971 minha temporada paulista foi interrompida por alguns meses em Belém. Logo que aqui cheguei, Benedicto Monteiro me entregou os originais de um livro que pretendia publicar. Com surpresa, vi que o ex-político, então no exercício da profissão de advogado, escrevera um romance. Mas não um romance qualquer: era uma grande obra de ficção. Voltei a Bené e lhe mostrei os originais, com muitas anotações minhas, manifestando-lhe meu entusiasmo. Devia publicar logo: Verde Vagomundo certamente iria causar impacto nacional. Ele me confessou que já havia mandado os originais para três ou quatro pessoas, autoridades locais em literatura, mas não recebera qualquer resposta.
Para estimulá-lo ainda mais, escrevi uma série de três artigos em A Província do Pará, dando minha opinião: a Amazônia voltava a ser tema literário de primeira linha. Num momento em que o mundo da natureza, no qual o homem nativo era ainda um detalhe, começava a ser destruído pelo colonizador, Benedicto Monteiro, com fina sensibilidade e conhecimento íntimo das coisas que dizia, nos reconciliava com a "nossa" Amazônia, sem dissociá-la da nova aventura em que era metida, por conta dos caminhos abertos no seu interior para migrantes de todo país (e captados pelas ondas hertzianas do rádio).
Tão logo Verde Vagomundo saiu, lançado no Rio de Janeiro por uma pequena editora de um amigo de Bené, Lúcio Abreu, mandei um exemplar para Léo Gilson Ribeiro, em São Paulo. Crítico de respeito, Léo também se encantou com o romance. Escreveu uma página de elogios no Jornal da Tarde, o vespertino de O Estado de S. Paulo, abrindo as portas do país à excelente novidade vinda do distante e mal-conhecido Norte. Empolgado, Benedicto partiu para o segundo e igualmente bem-sucedido livro: O Minossauro. Abri para ele a capa do Bandeira 3, o semanário que editava em 1975, e espaço para uma longa entrevista e um artigo sobre o novo livro.
Parecia que teríamos um novo Dalcídio Jurandir, desviado do Marajó para o Baixo-Amazonas, centrado na siciliana Alenquer. Mas os redutos sulistas não se renderiam como as muralhas de Jerusalém às cornetas de Josué. Nem os elogios e nem a acurada análise de um paraense cosmopolita, como Benedito Nunes, deram a Bené o reconhecimento que ele merecia só pelos dois livros, melhores do que obras incensadas pela crítica auto-suficiente do eixo dominante da cultura (e de tudo mais) do Brasil.
Não era de admirar: o que acontecia ao escritor se repetia em tudo na relação entre a periferia e o centro do país. Mas Bené era um caboco valente e decidido: foi lançando um livro depois do outro. No meu entendimento, como os dois primeiros romances continuaram a ser o modelo, tiveram com os demais a relação de uma base concentrada com sua diluição. Houve perda de qualidade na super-exploração dos motivos originais, que constituíam a grande força de Verde Vagomundo e Minossauro.
Bené não gostou das críticas, que se estenderam ao campo da sua atuação pública, como procurador-geral do Estado e político, de volta à atividade depois da quarentena compulsória pela cassação. Como havia um afeto mútuo, desenvolvido durante a fase de relacionamento mais constante que tivemos, foi preferível evitar os atritos, cada um levando a própria vida e nela procurando fazer o melhor, para si e os demais. Continuei a acompanhar a atividade de Benedicto Monteiro a certa distância, mas com grande interesse - e inabalável admiração.
Se não fosse advogado, político e escritor, Bené já justificaria o carinho geral que conquistou como pessoa. Era um típico caboco (não caboclo) do Baixo-Amazonas, eficiente cultivador de suas raízes, companheiro alegre e generoso, prosador emérito. Suas qualidades pessoais foram realçadas e multiplicadas pela companhia de sua mulher, Wanda, que morreu quatro antes do passamento do marido. Benedicto Wilfredo Monteiro se foi no dia 16, depois de incrível resistência, aos 84 anos. Enfrentou como um bravo as sucessivas doenças que interromperam nos últimos anos seu currículo de homem saudável. Só cedeu quando, entre dores, começou a sentir o chamado da mulher que amou. Virou-se para quem estava próximo e pediu que o deixassem ir. E assim, como um amante de tudo que a vida ofereceu, foi atrás de Wanda. Entre nós, muito vivo, deixou Miguel dos Santos Prazeres, o maior dos filhos que concebeu em seus escritos, e a família, que em torno dele viveu e, armada de sua memória, abrirá novos tempos na sua história.

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