Olhem só.
A reportagem abaixo, publicada pela revista Piauí, foi sugerida ao Espaço Aberto por um de seus leitores assíduos, o fotógrafo Luiz Braga, que dispensa apresentações.
Assinada por João Moreira Salles, é a primeira de uma série sobre a Amazônia que a revista publicará ao longo dos próximos quatro meses, resultado de dois anos de pesquisa e cinco meses de apuraçao na Região Norte.
Vale a pena ler.
Muito a pena.
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Um grau de latitude separa Belém da linha do Equador. De dia, o sol fustiga a cabeça, os ombros, o rosto, os postes, as casas, os prédios, as calçadas, os carros, os ônibus. O sol fustiga tudo.
Numa manhã de dezembro de 2019, no bairro Castanheira, um segurança da Igreja Universal do Reino de Deus olhava os carros passarem pela via expressa. No alto da escadaria que leva ao templo, em meio às buzinas, à fumaça e à feiura, lá estava o homem em seu posto, sem nenhuma sombra a protegê-lo. Eram oito da manhã, fazia 36ºC e ele vestia camisa, gravata e terno pretos, com todos os botões do paletó fechados.
Temos visto isso, esse empréstimo disparatado de protocolos criados para outras culturas e outros climas. A incongruência da cena, contudo, não é apenas um verbete a mais no rol das nossas imitações malfeitas. Aquilo é impraticável. O segurança de terno preto debaixo do sol equatorial é viável por muito pouco tempo. Se permanecer ali toda a manhã, desmaia; se não for acudido, morre. O que significa duas coisas: que a paisagem natural já não é capaz de protegê-lo e que a paisagem que a substituiu, construída à custa de muito trabalho, não é aliada da vida.
Em 1848, dois naturalistas ingleses, Henry Walter Bates e Alfred Russel Wallace, desembarcaram em Belém. No livro que Bates publicaria sobre os seus onze anos na região, Um Naturalista no Rio Amazonas – considerado por Darwin a melhor obra de história natural até então surgida na Inglaterra –, ele anota: “Na manhã do dia 28 de maio chegamos ao nosso destino. O aspecto da cidade ao amanhecer era extremamente aprazível.” Pela primeira vez tinha os trópicos diante de si, mas, para surpresa do leitor contemporâneo, Bates não reclama do calor, pelo contrário: “O clima nunca se mostra seco demais, pois jamais decorrem três semanas consecutivas sem algumas pancadas de chuva.” Ele elogia o viço das folhagens e a atmosfera amena da cidade, qualidades que atribui “ao frescor e à sombra proporcionada por sua exuberante vegetação”.
Bates e Wallace logo deram com borboletas. Amarelas, azuis, multicolores, “em quantidades nunca vistas por nós”. Era impossível percorrer os caminhos à beira-rio sem que bandos delas levantassem voo, num espetáculo tão espantoso que Bates achou necessário informar: “O leitor terá uma ideia da diversidade das borboletas se eu disser que podem ser encontradas cerca de setecentas espécies delas numa caminhada de uma hora nos arredores da cidade, ao passo que nas Ilhas Britânicas o número total conhecido não excede 66, e em toda a Europa, não vai além de 321.”
Oitenta anos depois, o escritor Mário de Andrade também esteve na cidade. Em 20 de maio de 1927, ele escreveu em seu diário de viagem: “O calor aqui está fantástico porém o paraense me falou que embora faça mesmo bastante calor no Pará o dia de hoje está excepcional.” O jeito era entrar no banho “de cinco em cinco minutos”. Apesar do calorão que lhe batia na cabeça “que nem um remo”, Mário gostou da cidade e foi se entusiasmando à medida que andava pelas ruas e provava as comidas. Ficou até “lustroso de felicidade”.
A Belém de Mário é muito mais urbana que a de Bates. Ali pouco se fala de flora e ainda menos de fauna, salvo a aprisionada no zoológico do Museu Goeldi. Mário admite ter mais prazer em admirar a natureza do que em descrevê-la, o que ajuda a compreender o sabor essencialmente citadino de suas anotações. Mas é possível que essa sua Belém não seja fruto apenas da sensibilidade de um modernista mais à vontade no concreto das cidades. Em parte, a explicação para que essa cidade tenha se descolado de seu meio natural pode ser encontrada não no diário do escritor paulista, mas nas observações do viajante inglês de meados do século XIX que o precedeu.
Onze anos depois de chegar a Belém e a poucos dias de retornar à Inglaterra, Henry Bates escreveu: “Ao andar pelas matas das redondezas – minhas velhas conhecidas –, notei que tinham sofrido muitas mudanças […] O espesso tapete de plantas rasteiras, arbustos e trepadeiras que em outros tempos – quando os arredores da cidade ainda não tinham sido mutilados pelo machado e a enxada […] – havia sido quase todo arrancado […] As majestosas árvores da floresta tinham sido cortadas, e os restos de seus troncos semicarbonizados projetavam-se do meio das cinzas, das poças de lama e dos montes de galhos partidos.” Desolado, Bates concluiu: “Os naturalistas, a partir de agora, terão de ir muito mais longe da cidade para encontrar o soberbo cenário da selva virgem, que ficava tão perto em 1848; precisarão também trabalhar muito mais arduamente para reunir as grandes coleções que o sr. Wallace e eu conseguimos obter nos arredores do Pará.”
Em Viagens, a polonesa Olga Tokarczuk, Prêmio Nobel de Literatura em 2018, define as “coisas importantes” como “aquelas que são únicas e sobre as quais paira uma terrível ameaça de destruição”. Um artigo sobre a Amazônia bem poderia começar assim.
sol que hoje nasce em Belém bate numa cidade que se separou de sua paisagem. De manhã cedo, a vista do alto de um prédio é de fogo sobre concreto e ferro. Por trás das ondas de calor que o asfalto refrata, surge a silhueta incerta dos espigões, centenas deles, espalhados por toda parte sem ordenamento urbanístico aparente. A cena é cinza, e nela os trópicos foram eliminados. Calhou de a cidade estar ali, poderia estar em outro lugar. A impressão é de que Belém já não sabe onde está.
“Uma cidade com cara de nada”, na expressão do fotógrafo Luiz Braga, que vem documentando sua terra natal há décadas. No plano temático, seu trabalho não se espalha, antes se adensa, para conhecer cada vez mais uma coisa só. Ele retorna, retorna e retorna aos mesmos lugares, como que seguindo a recomendação do explorador norte-americano John Burroughs: se quiser aprender algo novo, refaça o caminho que fez ontem. No passado, Braga fotografou a vida nos bairros ribeirinhos, com seus bares coloridos e paredes em que artistas populares pintavam a floresta. A cidade empurrou várias dessas comunidades para as periferias e muitas sucumbiram ao processo de degradação que marca a vida urbana brasileira. “Voltei a esses lugares e eles estavam bege.” Sumiram as cenas da mata.
Tentei continuar lendo. Ao clicar no link sempre retorna a mensagem "Erro ao estabelecer uma conexão com o banco de dados". Que pena.
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