terça-feira, 9 de abril de 2019

O boêmio Machadinho


Sob o título acima, o Espaço Aberto republica o artigo assinado por Cristovam Senna, do Instituto Cultural Boarnerges Sena e disponível no site de O Estado do Tapajós:

---------------------------------------------------------------------

Hoje, 9 de abril, foi sepultado aos 91 anos Edenmar da Costa Machado, "o Machadinho", como era de modo popular conhecido em Santarém. 
Nós últimos anos, olhando seu semblante sereno, ninguém poderia imaginar que ele já foi identificado como boêmio, sendo reconhecido pelos seus pares como uma das vozes mais bonitas de Santarém, quiçá do Pará, quem sabe do Brasil.
Vale ressaltar que o boêmio, no seu cotidiano, não é necessariamente um desocupado, um inútil para a sociedade, um desacreditado. 
Basta lembrar de boêmios bem sucedidos, a começar pelo Machadinho, que ombreou com figuras ilustres como Isoca, Laudelino, Joaquim Toscano, João Fona, Emir Bemerguy, Armando Soares, fazendo "serenata entre o rio e a verde mata, ponteando o violão". 
Não é qualquer boêmio seresteiro que tem o privilégio de cantar para um presidente da república, como aconteceu em 1974 quando o Garrastazu Médici visitou Santarém; nem representar seu povo no Teatro da Paz durante a Semana de Santarém, em 1972, acompanhado pela Orquestra Sinfônica do Pará, tendo ao piano seu inesquecível companheiro Isoca; ou ser convidado pela VARIG a ir ao Rio Grande do Sul fazendo parte de uma comitiva composta por músicos santarenos, para participar de encontro de agentes da companhia aérea, onde cantou "Terra Querida" e foi efusivamente aplaudido. 
Um dia, quando perguntado onde nasceu, Machadinho afirmou que se considerava santareno de coração, unido pelo amor que dedica e este chão, mesmo tendo nascido em Belém, no dia 14 de abril de 1928. Em  dezembro de 1982 recebeu o título de Cidadão Santareno. Em 1988 a medalha João Felipe Bettendorf. 
Aprendeu a se interessar por música com a mãe, que tocava piano e gostava de cantar. Acreditava que ali estava a raiz de tudo. 
A primeira vez que mostrou sua voz em público foi como estudante do Dom Amando, uma apresentação no dia 7 de setembro de 1944, no antigo Teatro Vitória. 
O sucesso da voz começou naquela primeira apresentação. Teve que voltar três vezes ao palco, nascia ali o boêmio Machadinho. 
Passou a acompanhar os seresteiros que cantavam e tocavam pelas tranquilas ruas de Santarém da metade do século passado. 
No início chegou a duvidar do seu potencial, do volume da sua voz. Uma noite, cantando no Teatro Cristo Rei, época em que o artista tinha que usar o peito como único recurso para se apresentar, pois o microfone ainda não tinha desembarcado por aqui, foi aplaudido de pé, não queriam que saísse do palco. 
Naquela noite, nos bastidores do Teatro, teve a certeza que era verdade o que diziam dele. Passou a acreditar que era um cantor de sucesso, que era querido não só em Santarém, mas na região. 
O pai queria que estudasse para ser doutor, mas preferiu se dedicar à música. Para ele a vida era cantar, tocar violão, ser feliz. Chegou a ir estudar em Belém mas, um dia, de férias, encontrou uma moça chamada Áurea, se apaixonou, teve de abandonar os estudos e vir embora. Preferiu trabalhar para sustentar a família. 
O casamento não o privou da boemia. Quando ainda estavam noivos selaram o pacto da boa convivência. Machadinho foi categórico com a noiva Áurea: você vai casar com uma pessoa que gosta da boemia, da noite, veja o que você esta fazendo! 
Ela aceitou a concorrência da boemia,  nunca o impediu das serestas, depois passou a acompanhá-lo em alguns eventos pela cidade.
Estava com 23 anos quando casou em julho de 1951. Segundo ele, foi a mulher pra quem mais cantou, porque era difícil o namoro naquela época. Namorava cantando, altas horas da noite na frente da sua casa, pra ela saber que ele a amava. Conversas só de mês em mês.
Seu instrumento preferido era o piano, que nunca conseguiu aprender. O violão substituiu o piano, mais adaptado à sua vida de boemia. 
Começou a cantar com 14 anos, com 18 já estava no auge da fama em Santarém. Teve convites para sair, ir cantar no Rio de Janeiro e São Paulo, gravar discos, mas o pai nunca deixou que fosse. Naquela época, dizia ele, quem mandava nos filhos eram os pais.
Machadinho sabia que fazia parte de um restrito número de pessoas consideradas como  patrimônio da cidade. Ao lembrar das serenatas do seu tempo falava com saudade do luar que banhava as ruas, dos boêmios a cantar para a mulher amada.
Falava com carinho do Centro Recreativo, que fez parte da sua vida, sendo diretor por vários anos. 
O Mascote era o ponto de encontro da turma da seresta. A boemia lá se reunia, os que não tinham namorada ficavam a esperar o namoro dos outros terminar para começar a serenata. 
Ficavam a conversar, faziam coleta para depois da cantoria ir para o mercado comer linguiça no Zé Olaia. 
O personagem Machadinho é digno de uma biografia. 
Sua participação na vida religiosa merece destaque, como também na esportiva, onde foi presidente do São Francisco.  
Um dia sua voz foi sumindo devagarzinho, minguando, fazendo com que deixasse de lado o violão, abandonasse uma das suas duas grandes paixões, porque a outra, a esposa, continuou até a definitiva separação terrena. Passaram a fazer parte do passado, lembranças misturadas com saudades, mas que emergem do fundo do peito onde são guardadas com carinho, basta chegar o enlevo que as transporte, sentindo cheiros, ouvindo os acordes de uma música. Sofria resignado as duas separações.  
Em agosto de 2014 o grupo musical Canto de Várzea prestou merecida homenagem ao seresteiro Machadinho, com o show "Cantando pra Machadinho, realizado no Centro Recreativo. Para marcar a data, foi lançada a revista "Machadinho", editada pelo ICBS. 
Aproveitei uma entrevista que o Anderson Dizencourt e o Amarildo Gonçalves fizeram com o Machadinho, numa noite de 1989, durante um encontro de bar, para entre um gole e outro de cerveja colher do seresteiro longo depoimento. 
Ainda bem que o destino fez com que uma cópia da entrevista chegasse ao ICBS. Aproveitei a entrevista para compor a maior parte da revista e escrever este artigo. 
Encerro com o que o Emir Bermeguy escreveu no seu livro "Diário de um convertido", editado pelo ICBS em 2000. 
No dia 26 de junho de 1968 Emir anotou: 
"Com os amigos de ontem, tive mais algumas horas de deleite espiritual. Eu lhes prometera trazer aqui o maior cantor que possuímos, esse inexcedível Machadinho, e Laudelino Silva, um catarinense há vinte anos naturalizado santareno, que desvendou todos os segredos e manhas do cavaquinho. Os forasteiros ficaram visivelmente fascinados pela belíssima voz de nosso boêmio conterrâneo, não se conformando com o fato de vê-lo, anônimo, por aqui, quando lhe sobram credenciais artísticas para se projetar em todo o país. Contei-lhes, então, o seguinte: 
Herivelto Martins, há uns quinze anos, trouxe até cá o seu famoso “Trio de Ouro”, formado por si, Dalva de Oliveira e Nilo Chagas. Reconhecendo o valor excepcional de Edenmar Machado, ofereceu-se para levá-lo ao Sul naquela mesma viagem, pois sem dificuldade lhe asseguraria o êxito radiofônico; entretanto, o pai do rapaz negou-se a dar seu consentimento, mutilando, talvez, um destino, uma vida."
Machadinho foi sepultado hoje a tarde, dia 14 faria aniversário. 

Fotos:

01 - Machadinho e Áurea
02 - Moacir, Antônio Von, Machadinho e Peruano
03 - Semana de Santarém, cantando Poema de Amor 1971
04 - Rio Grande do Sul - 1973

Nenhum comentário:

Postar um comentário