quinta-feira, 18 de janeiro de 2018

Somos super-homens e supermulheres? Ou somos apenas jornalistas?

Momento em que Santiago Andrade, cinegrafista da Band, é atingido por rojão (Foto: Domingos Peixoto/AFP)
Não há dúvida.
Nós, jornalistas, muitos nos achamos mais que qualquer um. Simplesmente nos achamos.
Além de muitos de nós ainda nos acharmos os repositórios únicos de todas as verdades do mundo, resistimos em admitir que isso, ora bolas, apenas é um sintoma de nossas indisfarçáveis arrogâncias.
Mas não nos enganemos: jornalistas? Sim, nós o somos. Mas não somos nem super-homens, nem supermulheres. Não mesmo.
Essa constatação vem a propósito de um bom debate que rola nas redes sociais (yes, as redes sociais, acreditem, ainda são capazes de produzir bons debates), entre coleguinhas jornalistas.
Discute-se, em resumo, a respeito de um dos dilemas éticos da nossa profissão.
A busca pela verdade, desafio que o jornalismo nos impõe todo dia, o dia todo, não tem limites para o jornalista? Nem mesmo quando sua vida está sob gravíssimo e iminente risco?
Porque trabalhamos com fatos, porque precisamos estar perto dos fatos ou, pelo menos, precisamos estar com os fatos à vista, não devemos observar qualquer limite em relação à nossa integridade física para apurá-los?
Se formos escalados para cobrir, digamos, uma rebelião, temos que nos expor de peito aberto a um fogo cruzado, se isso for necessário para obtermos um aspecto exclusivo do fato que se antepõe à nossa frente?
Essas questões, que deflagram o debate entre colegas jornalistas, vêm a propósito de equipe da TV Liberal ter evitado entrar numa área onde quatro pessoas foram chacinadas, no bairro do Icuí-Guajará, em Ananindeua. E não entrou porque os jornalistas foram aconselhados pelos próprios moradores a não fazê-lo, porque o local é muitíssimo perigoso.
Então, digamos logo: a equipe da TV Liberal fez muito bem ao avaliar que, se o risco seria extremo ingressando numa rua do Icuí-Guajará, então, por cautela, melhor seria permanecer em local que expusesse os jornalistas a menos riscos.
Por um motivo simples, muito simples: há limite para tudo, inclusive no jornalismo; há limite para tudo, inclusive na busca pela verdade – ou por aquilo que entendemos ser a verdade (porque, não esqueçam, nunca fomos e jamais seremos os repositórios dela).
Ocorre-me, não sem coincidência, historinha inesquecível em que fui um dos protagonistas.
Corria os anos 1980.
Fui escalado pelo O LIBERAL, juntamente com o ótimo fotógrafo Alexandre Lima (que não sei mais por onde anda), para fazer matérias especiais sobre conflitos agrários no sul do Pará – Marabá, Redenção, Rio Maria, Conceição do Araguaia e redondezas.
Grande fazendeiro da região acabara de ser executado a tiros por invasores de suas terras.
O clima na área era de guerra. Jornalistas que ousassem andar pela região, sobretudo para tratar do explosivo da questão agrária, eram alvos iminentes de ataques armados.
Mas fomos – eu e Alexandre. Conosco, se não me falha a memória, cinco agentes da Polícia Federal.
Em uma ocasião, precisamos entrar numa ramal onde só cabia um carro, no caso, a caminhonete cabine dupla que nos conduzia.
Paramos na entrada do ramal para que houvesse uma rearrumação dos lugares no veículo.
Ficaram dois agentes da PF no banco da frente. Um deles dirigia o carro com a mão direita e, com a esquerda, mantinha uma arma engatilhada.
No banco de trás, eu e Alexandre entre mais dois agentes, um de cada lado. E um quinto policial, na carroceria da camihonete.
Todos os agentes da PF, repita-se, armados até os dentes e prontíssimos para disparar.
Entramos no ramal.
Diretamente, sem meias palavras, sem lero-lero e com a objetividade que só os apavorados e aparvalhados diante de grandes perigos podem demonstrar, perguntei aos agentes:
- Se nós sofremos uma emboscada neste ramal, quais as nossas chances?
Um silêncio de alguns foi quebrado pelo quase sussurrar de um dos agentes. Um sussurro que eu jamais haverei de esquecer:
- Quase nenhuma [chance].
Olhei pro Alex, que mantinha sua arma, a máquina fotográfica, a postos. Mas só estava menos pálido do que eu.
E depois eu ainda pensei comigo mesmo: mas se nos emboscarem aqui, crivando-nos de tiro, o Alex vai fazer mesmo o quê com essa máquina? Até hoje não sei a resposta a essa profundíssima e íntima reflexão (rsss)
Essa historinha é pra dizer o seguinte: se eu fosse avisado, antes de entrar no ramal, que teríamos praticamente nenhuma chance de sobreviver a uma emboscada, eu teria desistido de entrar ali.
Eu queria a verdade, estava atrás dela e já havia sido exposto a outros riscos. Mas aquele risco específico, de entrar num ramal de onde todos poderíamos sair mortos, aquele risco, portanto, eu não correria. Não mesmo. Se nem os policiais, fortemente armados, garantiam a própria vida deles, como eu haveria de acreditar que nós, protegidos por eles, poderiam nos salvar se um bando armado nos emboscasse?
É evidente que repórteres não são repórteres se forem medrosos e não se expuserem a vários riscos.
Mas quem mensura a extensão dos riscos deve ser o próprio repórter.
Em 2014, ele cobria uma manifestação na Central do Brasil, no Rio.
Sim, manifestações são arriscadas, porque um objeto contundente por lhe acertar. Mas o risco pode ser controlável pelo repórter – que pode se colocar numa posição menos insegura, pode correr em dado momento para buscar abrigo mais seguro etc.
Pois Santiago Andrade foi atingido por um rojão na cabeça, precisamente no dia 6 de fevereiro de 2014. Morreu quatro dias depois, aos 49 anos.
E se o cinegrafista avaliasse que não poderia ficar no meio da manifestação, porque poderia ser morto, e portanto desistisse da cobertura? Ele estaria ofendendo os melhores princípios do jornalismo?
Mas é claro que não.
Porque riscos, meus caros, somos nós, jornalistas, que calculamos. Somos nós que mensuramos.
No caso da equipe da TV, os moradores é que a alertou para os perigos do local. Haveria mesmo perigos tão grandes assim, a ponto de atrapalhar o jornalístico. Ou os moradores estariam exagerando? É difícil saber. E como os jornalistas não tinha como aferir a certeza dessa avaliação dos próprios moradores, melhor então fazer a reportagem a partir de um local menos inseguro.
E devemos calcular os riscos observando sempre aquele princípio externado no início: somos jornalistas, mas não super-homens e nem supermulheres.
Não mesmo.

3 comentários:

  1. Francisco Sidou19/1/18 18:40

    Assino embaixo, caro PB, sua lúcida análise sobre o papel do jornalista em busca da verdade, mas sem esquecer de suas limitações como seres humanos e não super heróis.

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  2. Ismael Moraes20/1/18 21:06

    Caro Bemerguy,sinto falta destas tuas crônicas autobiográficas. Quando nos presenteia de novo, que satisfação!
    Aí eu lembrei da passagem de uma música do Arnaud Rodrigues (agora ficou a duvida se essa letra era dele ou do Chico Anysio), em que ele diz que "o herói é o cabra que não conseguiu fugir a tempo".

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  3. Ismael Moraes20/1/18 21:07

    Caro Bemerguy,sinto falta destas tuas crônicas autobiográficas. Quando nos presenteia de novo, que satisfação!
    Aí eu lembrei da passagem de uma música do Arnaud Rodrigues (agora ficou a duvida se essa letra era dele ou do Chico Anysio), em que ele diz que "o herói é o cabra que não conseguiu fugir a tempo".

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