Momento em que Santiago Andrade, cinegrafista da Band, é atingido por rojão (Foto: Domingos Peixoto/AFP) |
Nós, jornalistas, muitos nos achamos mais que qualquer um.
Simplesmente nos achamos.
Além de muitos de nós ainda nos acharmos os
repositórios únicos de todas as verdades do mundo, resistimos em admitir que
isso, ora bolas, apenas é um sintoma de nossas indisfarçáveis arrogâncias.
Mas não nos enganemos: jornalistas? Sim, nós o somos.
Mas não somos nem super-homens, nem supermulheres. Não mesmo.
Essa constatação vem a propósito de um bom
debate que rola nas redes sociais (yes,
as redes sociais, acreditem, ainda são capazes de produzir bons debates), entre
coleguinhas jornalistas.
Discute-se, em resumo, a respeito de um dos
dilemas éticos da nossa profissão.
A busca pela verdade, desafio que o jornalismo
nos impõe todo dia, o dia todo, não tem limites para o jornalista? Nem mesmo
quando sua vida está sob gravíssimo e iminente risco?
Porque trabalhamos com fatos, porque precisamos
estar perto dos fatos ou, pelo menos, precisamos estar com os fatos à vista, não
devemos observar qualquer limite em relação à nossa integridade física para
apurá-los?
Se formos escalados para cobrir, digamos, uma
rebelião, temos que nos expor de peito aberto a um fogo cruzado, se isso for necessário
para obtermos um aspecto exclusivo do fato que se antepõe à nossa frente?
Essas questões, que deflagram o debate entre
colegas jornalistas, vêm a propósito de equipe da TV Liberal ter evitado entrar
numa área onde quatro pessoas foram chacinadas, no bairro do Icuí-Guajará, em
Ananindeua. E não entrou porque os jornalistas foram aconselhados pelos próprios moradores a não fazê-lo, porque o local é muitíssimo perigoso.
Então, digamos logo: a equipe da TV Liberal fez muito bem ao avaliar que, se o risco seria extremo ingressando numa rua do Icuí-Guajará, então, por cautela, melhor seria permanecer em local que expusesse os jornalistas a menos riscos.
Por um motivo simples, muito simples: há limite para tudo, inclusive no jornalismo; há limite para tudo, inclusive na busca pela verdade – ou por aquilo que entendemos ser a verdade (porque, não esqueçam, nunca fomos e jamais seremos os repositórios dela).
Então, digamos logo: a equipe da TV Liberal fez muito bem ao avaliar que, se o risco seria extremo ingressando numa rua do Icuí-Guajará, então, por cautela, melhor seria permanecer em local que expusesse os jornalistas a menos riscos.
Por um motivo simples, muito simples: há limite para tudo, inclusive no jornalismo; há limite para tudo, inclusive na busca pela verdade – ou por aquilo que entendemos ser a verdade (porque, não esqueçam, nunca fomos e jamais seremos os repositórios dela).
Ocorre-me, não sem coincidência, historinha inesquecível
em que fui um dos protagonistas.
Corria os anos 1980.
Fui escalado pelo O LIBERAL, juntamente com o
ótimo fotógrafo Alexandre Lima (que não sei mais por onde anda), para fazer matérias
especiais sobre conflitos agrários no sul do Pará – Marabá, Redenção, Rio Maria,
Conceição do Araguaia e redondezas.
Grande fazendeiro da região acabara de ser
executado a tiros por invasores de suas terras.
O clima na área era de guerra. Jornalistas que ousassem andar pela região, sobretudo
para tratar do explosivo da questão agrária, eram alvos iminentes de ataques
armados.
Mas fomos – eu e Alexandre. Conosco, se não me
falha a memória, cinco agentes da Polícia Federal.
Em uma ocasião, precisamos entrar numa ramal
onde só cabia um carro, no caso, a caminhonete cabine dupla que nos conduzia.
Paramos na entrada do ramal para que houvesse
uma rearrumação dos lugares no
veículo.
Ficaram dois agentes da PF no banco da frente.
Um deles dirigia o carro com a mão direita e, com a esquerda, mantinha uma arma
engatilhada.
No banco de trás, eu e Alexandre entre mais dois
agentes, um de cada lado. E um quinto policial, na carroceria da camihonete.
Todos os agentes da PF, repita-se, armados até
os dentes e prontíssimos para disparar.
Entramos no ramal.
Diretamente, sem meias palavras, sem lero-lero e
com a objetividade que só os apavorados e aparvalhados diante de grandes
perigos podem demonstrar, perguntei aos agentes:
- Se nós sofremos uma emboscada neste ramal,
quais as nossas chances?
Um silêncio de alguns foi quebrado pelo quase
sussurrar de um dos agentes. Um sussurro que eu jamais haverei de esquecer:
- Quase nenhuma [chance].
Olhei pro Alex, que mantinha sua arma, a máquina
fotográfica, a postos. Mas só estava menos pálido do que eu.
E depois eu ainda pensei comigo mesmo: mas se
nos emboscarem aqui, crivando-nos de tiro, o Alex vai fazer mesmo o quê com
essa máquina? Até hoje não sei a resposta a essa profundíssima e íntima
reflexão (rsss)
Essa historinha é pra dizer o seguinte: se eu
fosse avisado, antes de entrar no ramal, que teríamos praticamente nenhuma
chance de sobreviver a uma emboscada, eu teria desistido de entrar ali.
Eu queria a verdade, estava atrás dela e já
havia sido exposto a outros riscos. Mas aquele
risco específico, de entrar num ramal de onde todos poderíamos sair mortos,
aquele risco, portanto, eu não correria. Não mesmo. Se nem os policiais, fortemente
armados, garantiam a própria vida deles, como eu haveria de acreditar que nós,
protegidos por eles, poderiam nos salvar se um bando armado nos emboscasse?
É evidente que repórteres não são repórteres se
forem medrosos e não se expuserem a vários riscos.
Mas quem mensura a extensão dos riscos deve ser
o próprio repórter.
Vocês querem um exemplo? O caso
do cinegrafista Santiago Andrade, da Band.
Em 2014,
ele cobria uma manifestação na Central do Brasil, no Rio.
Sim, manifestações são arriscadas, porque um
objeto contundente por lhe acertar. Mas o risco pode ser controlável pelo
repórter – que pode se colocar numa posição menos insegura, pode correr em dado
momento para buscar abrigo mais seguro etc.
Pois Santiago Andrade foi atingido por um rojão
na cabeça, precisamente no dia 6 de fevereiro de 2014. Morreu quatro dias
depois, aos 49 anos.
E se o cinegrafista avaliasse que não poderia
ficar no meio da manifestação, porque poderia ser morto, e portanto desistisse
da cobertura? Ele estaria ofendendo os melhores princípios do jornalismo?
Mas é claro que não.
Porque riscos, meus caros, somos nós,
jornalistas, que calculamos. Somos nós que mensuramos.
No caso da equipe da TV, os moradores é que a alertou para os perigos do local. Haveria mesmo perigos tão grandes assim, a ponto de atrapalhar o jornalístico. Ou os moradores estariam exagerando? É difícil saber. E como os jornalistas não tinha como aferir a certeza dessa avaliação dos próprios moradores, melhor então fazer a reportagem a partir de um local menos inseguro.
No caso da equipe da TV, os moradores é que a alertou para os perigos do local. Haveria mesmo perigos tão grandes assim, a ponto de atrapalhar o jornalístico. Ou os moradores estariam exagerando? É difícil saber. E como os jornalistas não tinha como aferir a certeza dessa avaliação dos próprios moradores, melhor então fazer a reportagem a partir de um local menos inseguro.
E devemos calcular os riscos observando sempre
aquele princípio externado no início: somos jornalistas, mas não super-homens e
nem supermulheres.
Não mesmo.
Assino embaixo, caro PB, sua lúcida análise sobre o papel do jornalista em busca da verdade, mas sem esquecer de suas limitações como seres humanos e não super heróis.
ResponderExcluirCaro Bemerguy,sinto falta destas tuas crônicas autobiográficas. Quando nos presenteia de novo, que satisfação!
ResponderExcluirAí eu lembrei da passagem de uma música do Arnaud Rodrigues (agora ficou a duvida se essa letra era dele ou do Chico Anysio), em que ele diz que "o herói é o cabra que não conseguiu fugir a tempo".
Caro Bemerguy,sinto falta destas tuas crônicas autobiográficas. Quando nos presenteia de novo, que satisfação!
ResponderExcluirAí eu lembrei da passagem de uma música do Arnaud Rodrigues (agora ficou a duvida se essa letra era dele ou do Chico Anysio), em que ele diz que "o herói é o cabra que não conseguiu fugir a tempo".