Por Vicente Malheiros da Fonseca
Wilson Fonseca (Maestro Isoca) não era apenas
escritor, pesquisador, poeta, pianista, organista, maestro, compositor,
historiador, memorialista, folclorista, professor, bancário e executante de
diversos outros instrumentos musicais (como triângulo, violino, contrabaixo de
cordas, bateria, banjo-tenor, requinta, clarinete, saxofone-alto).
Mais do que o homem dos sete instrumentos, ele
tinha várias outras habilidades.
A exemplo do grande compositor J. S. Bach
(1685-1750), Isoca também era uma espécie de “luthier”, pois além de tocar
piano, afinava e consertava o instrumento (Bach era organista e não alcançou a
época do piano).
Como se sabe, o piano tradicional tem 88 teclas
(brancas e pretas), mas cada martelo, movido por cada tecla tocada pelo
pianista, percute três cordas (finas) com idêntica afinação, nas notas agudas e
boa parte das médias; na parte um pouco mais grave, duas cordas (médias); e nos
graves, uma corda (as grossas ou os “bordões”). Dentro do piano existe uma
espécie de harpa, embora com quantidade maior de cordas, pois algumas são
triplicadas ou duplicadas, a fim de permitir melhor qualidade do som. Daí o
nome original do instrumento: piano-forte. E ainda tem os pedais para imprimir
a dinâmica exigida pela música.
Isso significa que o afinador de piano tem o
trabalho quase triplicado de temperar cada nota do instrumento. A afinação
demora horas e, às vezes, mais de um dia...
Em nossa casa há dois pianos.
O mais antigo é da marca Ritmüller-Göttingen,
fabricado na Alemanha, em 11 de março de 1910 (mesmo dia e mês de meu
nascimento, em 1948). O instrumento é mais "velho" do que o próprio
Isoca, nascido em 1912, que o adquiriu de segunda mão. Seu móvel tem a cor
preta.
E outro piano mais novo, da marca Essenfelder,
nacional, de cor marrom, que eu, universitário do curso de Direito, escolhi,
por sugestão de meu pai, na década de 60 do século XX, em Belém, quando aqui
havia piano acústico para vender...
Vi meu pai afinando e consertando o complexo
maquinário (feltros, martelos etc.) dos pianos lá de casa e outros pianos da casa
de minha tia Ninita, do Colégio Santa Clara, do Centro Recreativo etc.
Ele era o afinador de pianos da cidade. E
praticamente não usava o diapasão para afinar os instrumentos, pois tinha
“ouvido absoluto”.
Outra habilidade de Wilson Fonseca: conhecia o
código Morse, utilizado pela velha telegrafia usual.
Certa vez, quando ministrava uma aula de
violino, o seu aluno não conseguia aprender um trecho de uma lição. Mas como o
discípulo era telegrafista, Isoca logo conseguiu que ele aprendesse aquela
parte “difícil” da lição de violino, comparando com uma frase em código Morse.
O Mestre deu a dica ao aluno: “olha faz assim, como no código Morse”. Um santo
remédio, pois a lição foi imediatamente aprendida pelo
telegrafista-violinista...
Embora nunca tenha participado de qualquer jogo
de azar, Isoca conhecia todos os bichos do “jogo do bicho”, na ordem
alfabética, como se fosse um “viciado” (ele não fumava e nem bebia), desde a
avestruz até a vaca. Nós éramos garotos e ficávamos admirados com essa
habilidade do “velho”.
Ele fazia mágicas... Revelava as fotos que ele
próprio batia... Foi funcionário dos Correios... Escrevente juramentado de
Cartório...
Conhecia os títulos de milhares de filmes, seus
diretores e artistas, uma vez que sonorizou cenas de inúmeras películas
projetadas em Santarém, na época do cinema mudo. Mais de 1.500 filmes
(infelizmente, ele perdeu as anotações que guardava sobre todos (esses
filmes)... Aliás, Isoca tocava de cor, ao piano, diversas músicas daquele
período e se lembrava das cenas e artistas. Tocava até de olhos fechados,
porque, na época do cinema mudo, preferia decorar as peças para poder assistir
todas as cenas dos filmes.
A sua primeira composição musical, a valsa
“Beatrice” (1931), foi elaborada para uma cena do filme “O Beijo”, com Greta
Garbo.
Isoca era um pouco médico ou enfermeiro, um
pouco engenheiro e um pouco psicólogo. Adivinhou o sexo de todos os filhos numa
época que não havia exames capazes de precisar o gênero do bebê. Sabia aplicar
injeções. Projetou a sua própria casa, bem como várias reformas. Dava conselhos
inesquecíveis para muita gente. Tinha uma intuição fenomenal.
Falarei um pouco de nossa casa em Santarém, esse
saudoso e salutar ambiente residencial. Ah! a nossa casa...
Fica situada na Travessa Francisco Corrêa nº
139, esquina com a Rua Floriano Peixoto (bairro central de Santarém), onde meu
pai morou, com a família, no período de 1950 até 2002, quando faleceu, em
Belém.
Nessa casa a família pretende instituir um
memorial ou um museu. O imóvel, aliás, está situado numa região da cidade já
preservada pelo Poder Público, pois se trata de uma zona urbana histórica de
Santarém.
Logo ao lado reside meu irmão José Agostinho da
Fonseca Neto (Tinho), que cuida, com zelo e dedicação, da 'nossa casa'.
Na época (fim da década de 40), meu pai adquiriu
apenas um terreno, que pertencia à dona Rufina, uma negra, descendente de
escravos.
Inicialmente, naquele terreno, meu pai construiu
a casa de sua mãe, a minha avô Aninhas, já viúva do Maestro José Agostinho da
Fonseca.
Depois, ele construiu a sua própria casa,
mediante financiamento da Caixa Econômica Federal.
Em seguida, Isoca deu de presente a terceira
parte do terreno a seu irmão Wilde (tio Dororó), recém-casado, para a
construção de sua casa também.
O meu irmão José Agostinho da Fonseca Neto mora
no lugar onde antes residia a minha avó Aninhas, na Rua Floriano Peixoto, nº
282.
Uma curiosidade: meu pai costumava visitar a
minha avó, sua mãe, todos os dias, para pedir-lhe a bênção e tomar um cafezinho
delicioso, após o almoço. Bastava dar um pulinho na casa vizinha. E os filhos,
não raro, sempre o acompanhavam nesse hábito.
Os três primeiros filhos de Isoca (inclusive eu)
nascemos em outras residências, alugadas.
Na casa própria, na Trav. Francisco Corrêa,
nasceram os últimos três filhos do Maestro Isoca.
Ele contava que começou a pagar a primeira
prestação do financiamento, na CEF, em 1950; que o primeiro ano de sua terceira
filha Maria das Dores (novembro/1950) foi festejado na casa nova; e que a
última prestação do financiamento seria paga no ano em que minha irmã
completasse 15 anos de idade (1964), como de fato aconteceu. No ano anterior,
ele já compunha a "Valsa dos 15 anos" (1963). E cada filha ainda tem
a sua valsa ("Maria das Dores", "Conceição" e "Maria
de Jesus"), cujas letras foram feitas posteriormente por mim (havendo,
porém, parceria, no texto poético da valsa "Conceição", que elaborei
em conjunto com a própria homenageada).
Portanto, muitas composições musicais, inclusive
o conhecido bolero "Um Poema de Amor" (1953), dedicado ao meu irmão
José Agostinho Neto (Tinho), foram criadas e tocadas justamente nesse saudoso e
salutar ambiente residencial.
A visão frontal de nossa casa, em Santarém,
permite identificar um detalhe para o qual chamo a atenção. Do lado esquerdo do
prédio existe um lugar especial dedicado ao piano. Ali foi edificada uma
saleta, com piso elevado, e dois degraus de acesso, parecendo um palco. A
família costuma chamar, para esse ambiente, de "redondo", em virtude
de seu formato arquitetônico. Em outra dependência da casa existe o “quadrado”,
outra pequena sala. Isoca praticamente idealizou todas as dependências da
'nossa casa' e as reformas no prédio.
Ali no “redondo” fica o piano mais antigo, na
extrema esquerda do prédio, onde Isoca também guardava muitas, excelentes e
raras partituras musicais, de sua própria lavra, de seu pai e de outros
compositores. Que preciosidade!...
Quantas vezes ouvi discos, em sua companhia,
músicas e músicas, acompanhando as partituras das peças, com as explicações
geniais do Mestre...
Antes de tocarmos a Abertura da ópera “Barbeiro
de Sevilha”, de Rossini, com redução para Piano a 4 mãos, ele colocou para
tocar, na eletrola (equipamento de som), a gravação da orquestra e foi me
explicando, detalhe por detalhe, cada trecho. Tocamos diversas outras peças
para Piano a 4 mãos em recitais por ele organizados, em Santarém.
Minhas primeiras aulas de piano foram
ministradas, por meu pai, naquele piano antigo.
Que saudade!
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Trechos transcritos do livro A Vida e a Obra de Wilson Fonseca (Maestro
Isoca), de Vicente José Malheiros da Fonseca – Gráfica do Banco do Brasil
(Rio de Janeiro-RJ), 2012. ISBN: 978-85-918752-0-7).
Como nos faz bem ler e imaginar o lado lindo da vida real... Atua como um antídoto contra o estado de alienação causado pela "vida cada vez mais virtual" estimulada pela Internet, Facebook, WhatsApp, Twitter, Instagran, selfies e "curtir ou não curtir, eis a questão"...
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