Por OLAVO DUTRA, jornalista (em tempo de saborosas reminiscências)
De como livrar um assustado colega de redação das garras da Polícia trajando sobretudo londrino e embrulhado em papel jornal numa sexta-feira13.
No dia em que o empacotariam, o diagramador João Bosco (na imagem) chegou à redação de "A Província" com o mesmo andar de boi a caminho do matadouro. Quem o observou na passagem da portaria e ao final do segundo dos dois lances de escada antes da redação percebeu-o suado, evaporando fluidos com odores muito conhecidos. Passava das quatro da tarde quando enfiou o cartão de ponto no Dimep pregado a um canto de parede entre a redação e a sala dos revisores. O velho relógio sussurrou, cravou sua marca com tinta quase apagada no cartão amarelo e se aquietou a espera de novo acionamento. Quem sabe o Salvador...
Ninguém poderia desconfiar.
Por volta das sete, o “Aquário” fervilhava. Era uma saleta estreita e longa onde se maquinava tanto a edição seguinte quanto o desconforto alheio. Chembra tamborilava um samba do Rancho com uma Bic Escrita Fina que lhe dera Edwaldo Martins na passagem para sua sala de trabalho, um espaço contíguo com vista para o nada. Cara fechada como sempre, ouvia Arlindo e Tampa de Bilha, dois repórteres policiais que retornavam da ronda. Boa notícia não seria, vindo desses dois, pelo menos para quem se julgava bem posto em sossego àquela hora da noite.
Alguém deveria se preocupar.
Lá fora, na redação, ouvia-se apenas o ruído frenético das máquinas de escrever e do telex. Da bancada de diagramadores, João Bosco espichou os olhos sonolentos para o “Aquário”, através do vidro, mas não identificou nem o sentido de tanta movimentação num lugar no mais das vezes carrancudo, muito menos o teor da conversa, que lhe parecia muito estranha e ao mesmo tempo bastante familiar. Nunca teve reputação merecida em leitura labial.
Antes tivesse.
Pensava na noite anterior, quando, num temerário voo solo, decidiu se aconchegar em um canto de um boteco mal afamado às proximidades do bosque. Bebeu todas. Quisera lembrar detalhes da noitada para dividir com os colegas de trabalho, mas uma névoa espessa, indistinta e insistente roubava-lhe da memória qualquer traço daquelas horas. Só se deu conta de que naquele momento, na algazarra da redação, era um diagrama em branco ao ser despertado pela pressa do editor. De resto, nada sabia, de nada lembrava.
No “Aquário” todos sabiam.
A “Operação Empacotamento” envolveu duas ou três pessoas, inclusive eu, encarregado de transmitir detalhes da tramoia para Antônio Rath, na portaria. A história foi montada com base em uma informação real, embora acidental, dada aos repórteres policiais e oferecida como galhofa ao Chembra. O factoide dava conta de que dois policiais, contratados pelo dono do bar onde João Bosco atravessara a noite anterior, o esperavam em um carro estacionado em frente ao Cartório Queiroz Santos. A conta não fora paga e era hora do acerto. Ou a cadeia. Pregado na cadeira de diagramador, João Bosco tremeu. A névoa que o acompanhava desde as primeiras horas da tarde desapareceu e deu lugar à dura realidade.
As nuvens são passageiras.
Quando a moça do bar apresentou a conta, o notívago de primeira hora estava só. Primeiro, apalpou o bolso da camisa. Nada. Depois deslizou o polegar e o indicador em forma de bico no bolso lateral da calça do velho jeans cansado pelo uso e esbarrou no vazio. Então, num rasgo de desespero enfiou a mão direita trêmula na última esperança, mas a textura do achado não indicava dinheiro. O último bolso vasculhado pariu uma carteirinha endurecida pela plastificação onde a garçonete leu: A Província do Pará - Jornalista.
Era a carteirada.
Naquela noite, a redação se dividiu entre um jornalista duro e um colega oprimido, mas todos foram unânimes em apoiar a única alternativa capaz de livrá-lo da vil ameaça de prisão: empacotá-lo em papel jornal, abrir uma rota de fuga através da sala de impressão, no térreo do prédio, até despejá-lo, retirado da mala do indefectível Chevette preto do Chembra no Biriba, não, no Bar do Parque. Só então Guilherme Barra largou o telefone e acorreu ao grupo de bons companheiros para ajudar na mirabolante empreitada: ofereceu um sobretudo preto, próprio para o fog londrino, que emprestaria uma ar sombrio ao rendido companheiro.
Alguém deveria fazer alguma coisa.
A madrugada de sexta-feira 13 despontava sobre a Bahia do Guajará quando o pacote atravessou a Campos Sales direto para a mala do Chevette. Vinte metros adiante, estacionado em frente ao cartório, um Opala Cupê bege foi citado pelos carregadores como o carro da Polícia, mas João Bosco, empacotado dos pés a cabeça, apenas com um buraquinho à guisa de respiradouro à altura do nariz, não o viu. Na redação, João Bosco, o do Rancho, encerrava sua visita noturna quase diária recriminando a operação, sem sucesso.
Chembra dirigiu o féretro ao destino final.
E deu-se o fato de que bêbados, escritores, jornalistas, putas e desavisados, incluindo marinheiros chineses e suas quengas viram descer de um Chevete preto, em Plena Praça da República, por volta da primeira hora de uma sexta-feira 13, um pacote que, desembrulhado, parecia mais um exu assustado diante de tantos olhares curiosos, mas aliviado por ter escapado da Polícia de maneira cinematográfica. Desce a cerveja, Abaeté!
Deram o traço no J. Bosco.
Mas que crônica deliciosa!
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