quinta-feira, 13 de novembro de 2014

A corrupção e a política na democracia

Por Edilson Mougenot Bonfim, no Fato Notório
Historicamente constata-se que o homo corruptus pode alojar-se em qualquer partido, podendo ser até apartidário, ou partidário e suprapartidário. Este artigo, pois, tem endereço certo: a corrupção, onde quer que esteja alojada.
A simbiose do poder com o dinheiro
O poder e o dinheiro muitas vezes se alternam no espectro visionário do homo politicus, pois este também tem  dentro de si, igualmente, em maior ou menor proporção, um homo economicus ou financeiro, e no simbólico jogo praticado pela personalidade insaciável, aquele que entrou por pura vaidade na política, diretamente almejando o poder, lentamente laceia seus freios éticos e,  paulatinamente se faz mais e mais sensível ao apelo do dinheiro. Afinal, que poder é esse, se ele, político, tanto manda, mas, não tem os bens e valores como outros homens especialmente “ricos”, dependendo destes ou de outrem, invariavelmente, para financiar sua campanha ou pagar seus gostos de vida? A fratura mental é certa, passando ao sonho da fortuna, posto que embora obtido algum poder, não obstante, não viu saciado seu insaciável desejo, que a seu ver, agora o dinheiro pode completar. Afinal, em nossa sociedade o êxito está geralmente associado ao dinheiro, fazendo subsistir uma correlação entre os desejos de poder e riqueza.
A cobrança da vaidade: contributo psicológico para a corrupção
Por conseguinte, a alteada vaidade cobrará meios, seja para a ascensão, perpetuação no poder, seja para ascender em seus degraus, sempre íngremes, ou ainda, pura e simplesmente, para poder realizar gostos ou pessoais extravagâncias, exatamente aquilo que o poder ilusionariamente prometeu e não cumpriu. Este é um notável momento em que o desejo do poder político resvala para a cobiça financeira, o namoro com a ganância, o interesseiro afeto pelos cofres públicos, como amante patologicamente enamorado do dinheiro que ainda não é seu.  Do exercício do poder à instrumentalização do poder para to make money, o passo é leve e sutil.
A busca de uma escusa: o paradoxo do bom ladrão
Muito em voga, aliás, uma tentativa exculpatória de criar-se um modelo de corrupto político virtuoso, ou, moralmente desculpável, onde o vício vira virtude ao lançar-se o paradoxo do bom ladrão: “Não pegou  para ele... a causa é justa... é para financiar um projeto político voltado ao bem comum!”, donde se desfia o rosário da sandice pela lógica do absurdo. É que por não haver uma escusa legal, buscou-se um argumento moral, construído em premissas falsas, portanto, imoral, falacioso, buscando impedir a censura pública ao corrupto, que sendo vaidoso, esta, tanto mais lhe doeria, porque pretende haurir da política, ademais de poder e dinheiro, o agrado, o aplauso e a bajulação. Assim, escudando-se em um improvável álibi moral, sustentam no cinismo sempre incontroverso, a engenhosa versão que diz que o dinheiro ilicitamente obtido não o seria diretamente para si, mas, para financiar o tal projeto político, a tal causa justa – ora, pois!-, espécie  de Robin Wood democrático, onde furtando os predicados da retidão, faz a sociedade penar, fenecendo a democracia, na medida em que conjuga na primeira pessoa do singular, ou em restrito grupo da primeira pessoa do plural, o ilícito verbo “locupletar”. E locupletam-se.  O crime de bando ou quadrilha, a organização criminosa, ganha ares de salvacionismo pátrio pelas cores do ideal. Foi assim ontem, é assim hoje, e, não rompido o circulus vitiosus, o será amanhã.
“Eu suborno, tu subornas, ele suborna, nós nos prejudicamos”, escreveram alunos de uma escola de segundo grau em Buenos Aires (apud Luís Moreno Ocampo, En Defensa Propia, Cómo Salir de La Corrupción, Editorial Sudamericana, Buenos Aires, 1993, p. 19), descobrindo em jogral, o que na prática temos aqui também experimentado, um jogral da antidemocracia.
A análise de uma anomalia moral
Trazida a anomalia à lupa analítica das relações de causalidade, sabendo-se que o dinheiro é apenas instrumento para um fim, e se o fim deste homem –o corrupto- é estar ou participar do poder, pouco importa a desculpa de sua causa, posto que esse é seu gosto e objeto de desejo –toda causa livremente abraçada é um desejo confesso-, como poderia ser o vinho, um carro, um imóvel, ou todo o conjunto reunido e algo mais. Desse modo, pouco importa a finalidade pela qual se corrompa o ser, a corrupção é substantivo em si, vez que não há projeto salvacionista ou messiânico de mundo – como sustentam alguns flagrados ao se apoiarem em causa partidária- que convença a mais ingênua das criaturas, de que foi por este projeto -e só por ele!- que o corrompido se corrompeu. A fuga do jardim da infância das aulas de caráter,  parece uma constante no reticente corrupto.
Os graus da corrupção 
A corrupção, esta madrasta de milhões de desgraçados, senhora absoluta da miséria humana, tem graus diversos, partindo seu modo de vida do “simples” tráfico de influência –que em alguns casos pode ser tão ou mais nefasto que a paga, o estipêndio- ou de uma improbidade, esta forma frustra de corrupção, espécie de tentativa idônea, até o vício indolente da gatunagem rasteira, das mãos rapaces, aquelas que desviam valores dos cofres públicos ou solicitam ou extorquem particulares em razão do cargo, como são os tipos da corrupção passiva e da concussão, previstas nos artigos  317 e 316, do Código Penal.
Os tipos de corruptos
Assim considerando, de se perguntar: quantos são os tipos de corruptos que identificamos à luz da criminologia? Podemos dizer, que ainda que se possam delinear sub-tipos, mesclar-se tipos, ou, mesmo, alterar-se onomasticamente a tipologia, básica e  exponencialmente vislumbramos duas personalidades variantes: o psicopático (criminoso habitual, tipo lombrosiano, ou habitual) –chamado atualmente de “transtorno de personalidade antissocial”-  e o situacional.
No caso psicopático, falamos do estelionatário lato sensu -o corrupto é um dos subtipos de estelionatários, que penalisticamente recebe denominação específica- e será um perigo enquanto viver.  Tendo as características da psicopatia não violenta, faz correr verbo onde antes corria sangue, substituindo-se como “cavalheiro de indústria e política” ao antigo cavaleiro do punhal para perpetrar o seu saque.  Sua especial condição de ser é a moeda fiduciária dada às pessoas inteligentes, cientes de que o mesmo, tendo oportunidade, invariavelmente delinquirá. Neste caso, conquanto fácil o diagnóstico, a terapêutica, diz a psiquiatria forense, é praticamente impossível.  Um vício de espírito, um defeito de caráter, um gene da imoralidade, a completa desfaçatez aos valores - já agora não importa a causa de sua miséria moral- quando o desrespeito à propriedade coletiva toma de assalto a reiterada conduta do infrator. Mil vezes tenha a chave do cofre, mil vezes será tentado à subtração, tão solerte é o vezo do gato, tão insidioso o impulso subtrator. É imanente ao ser seu modo de ser. Para ele não há conserto possível, não há emenda provável, a ressocialização é chiste –no mais das vezes, é hipersocializado!- e a punição, assim, se afeiçoa superiormente e apenas ao caráter retributivo, visando uma prevenção geral e especial, tendo por fundo a proteção social.
Preso, com os direitos políticos cassados, estará a salvo a sociedade. Solto, com os direitos políticos preservados, conduzirá outras campanhas sem pejo; uma vez com mandato, é profecia-que-a-si-mesmo-se-cumpre, e novamente, em invencível círculo vicioso violará o interdito proibitivo do 8º mandamento, fazendo-o como sina afirmativa ao incréu, e, dirá como prognóstico: "Furtarei!". Ressocialização?
Quem haverá de ressocializar-se são os ingênuos defensores da ideia néscia, na medida em que inseridos no contexto social, compreenderão a multifária fauna humana e seus espécimes, entendendo que uns respondem com paz a um convite de guerra, enquanto outros exterminam povos subjugados, ajoelhados e sequiosos de paz.
O ser humano é diverso, e a cultura social tem limites frente a natureza. Os exemplos da história moderna não têm permitido a poética ingênua no prognóstico corretivo do corrupto; ao contrário, são eles pródigos em reincidência, donde se fala em criminoso habitual ou por vocação.
O mau político afeiçoado à trampa, apsicopatado, homem de Lombroso, ao modelo do escroque,deambula pelo Estado vestido de democrata ou ditador, faz da ilusão uma virtude, do engano uma promessa, de ambos uma regra e, depois, em nome destes, nega vigência a valores sociais historicamente consagrados,  ao mínimo ético, fazendo da sociedade sua vítima difusa e da democracia - esta invocada mãe de mil desacertos- apenas um salvo-conduto a lhe proteger contra as penas duras ou infamantes. É na democracia, pois, este sistema que é tão mais atacado em suas bases quanto maior for o número de dirigentes corruptos, que se cria e procria a espécie, também de forma democrática, já que todos podem concorrer ou serem nomeados e terem acesso à prática, enquanto nos regimes totalitários estas ficam reservadas apenas, e, exclusivamente, aos donos do poder, os ditadores. Em um ou outro modelo, a corrupção faz imensuráveis danos!
E o corrupto situacional ou circunstancial? Aparenta ser em menor  número, ou, quando não, apenas combinado com o “tipo psicopático” (que tem graus variáveis de “transtorno antisocial”). É aquele que se coloca ou foi colocado nas condições propícias para o crime, uma vez eleito ou nomeado, no exercício do poder, a lei não logrou cobrar a devida transparência naquela função, havendo, igualmente, exacerbado poder de  discricionariedade e monopólio, e assim, ainda que ocasional ou circunstancial o crime, este tende a ocorrer, e não reprimido, a se repetir.
De regra, há uma semente moral da corrupção que começa a florescer já no palanque físico ou eletrônico da campanha, e depois, em processo lento, uma vez instalada no espírito auto-corrompente, firma-se definitivamente quando eleito, fincando raízes, crescendo a árvore e já dando maus frutos, passando, então, da potência ao ato. É o trabalho lento e persuasivo da corrosão dos valores, onde se aprende a mentir para a conquista do voto – promete-se do improvável à ilusão do impossível- e, depois, frente a dadas situações fáticas, pelas facilidades inerentes ao cargo, entrega-se ao dano, sem querer expiação.
Questão de precificação: o alto preço da má escolha
O eleitor, por certo, inconscientemente dá o seu aval para o crescimento do processo corruptor: faz que acredita –ou acredita- em promessas absurdas ou ilusórias, aceita a maquilagem verbal com que se engana como algo real e verdadeiro, enfim, dá ao candidato o primeiro passaporte ao jogo de esperteza ao confiar-lhe o voto, do qual, fortalecido em sua crença de superior inteligência, no exercício do mandato se valerá. Alguém vai ao açougue e aceita pagar preço maior que o tabelado no local, pelo quilo de carne? A metáfora é válida. Nas eleições institucionalizou-se a aceitação do pagamento exagerado, de bom grado, inclusive, de carne já deteriorada, quantas vezes vendida a preço áureo, quando sabemos que não vale nosso voto, mas, ainda assim votamos, e pagamos com os valiosos predicados ínsitos à democracia, o pregão demasiado do leilão dos aleijumes morais. Esse o sujeito da política travessa: porque pretende ser ungido(a), escolhido, já se tem na conta de melhor e quando então tripudia sobre os crédulos, essa crença se solidifica, tornando-se auto-referente, e tão mais vezes delinquirá, quanto mais dóceis forem as portas da impunidade. Afinal, já nos prevenira o conde Victor Lustig: “Tudo perde a graça se não tenho um otário em perspectiva. A vida parece vazia e deprimente. Não consigo compreender os homens honestos. Vivem sem esperanças, cheios de tédio”.
No caso do criminoso situacional, que é o mais excepcional, se punido, como  réu verdadeiramente arrependido, a punição pode de fato corrigí-lo –fato raro, certamente, mas, uma possibilidade, ainda assim-, e a prova da decência, da emenda, de regra consistirá justamente em recolher-se na vergonha e não tornar a concorrer, renegando na prática o ladrão que se diz reabilitado, que buscando a confiança do patrão, pretende de novo com ele trabalhar.
Abandonada a vida pública pela clara consciência do erro, será tão mais provável o conserto, onde mais exista arrependimento, como requisito insubstituível para a ressocialização.
A finalidade da pena, nos casos de corrupção
Enfim, o direito penal entra justamente para reprimir nefasta prática, que independente de quem seja seu autor, deverá ter na pena sempre, o quanto possível, o concomitante  caráter dissuasório, retributivo e, se o caso, ressocializador, quando a formação ou os princípios não foram suficientes ao indivíduo. É a poesia penal de Shakespeare (“Medida por medida”):
O bem não se levanta por si mesmo
senão através da imposição
assim como a noite cede ao dia           
quando a luz domina o firmamento
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EDILSON MOUGENOT BONFIM é procurador de Justiça (MP/SP), jurista e professor universitário – é professor convidado nos cursos de graduação e mestrado da Faculdade de Direito de Aix-en-Provence (França). Doutor em Direito Processual Penal pela Universidade Complutense de Madri-Espanha, estudou Filosofia do Direito, Direito Penal e Direito Penal Comparado no Instituto Ortega y Gasset (Madri). É autor de diversas obras jurídicas na área de Direito Processual Penal.

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