quarta-feira, 5 de março de 2014

Os últimos guinhos da cuíca

Por Luciano Martins Costa, no Observatório da Imprensa
Analisar os jornais brasileiros em uma terça-feira de carnaval pode ser tarefa indigesta: o clima ainda é de folia, mas a fantasia tem que conviver com o mundo real. O noticiário carnavalesco se debate com a grave crise na Ucrânia, que faz um contraponto extremado entre nossa relativa calmaria embalada pelo batuque e os mais recentes sacolejos do mundo pós-Guerra Fria.
A criatividade dos carnavalescos também não é suficiente para encobrir o nosso próprio quinhão de preocupações. A nuvem mais escura que cobre o cenário nacional carrega as votações recentes no julgamento da Ação Penal 470, que expuseram contradições importantes nos conceitos utilizados para a aplicação das penas impostas aos condenados.
Os debates que se seguem, contrapondo juristas de tendências divergentes e os costumeiros especuladores especializados em tudo, desconstroem o palco montado pela imprensa ao longo dos dois últimos anos: em vez de representar, como se dizia, o resgate da Justiça no Brasil, o caso ameaça ir para a História como uma grande trapalhada jurídica.
Embora ainda se possa questionar a interpretação dada pela imprensa à distribuição de dinheiro entre políticos, principalmente sua vinculação à votação de projetos de interesse do Executivo no Congresso Nacional, o fato de alguns dos principais condenados terem ganhado o abrandamento da pena no fim do processo não altera a demonstração de que a Justiça pode alcançar personalidades poderosas da política. O problema acontece quando os âncoras da opinião na imprensa apoiam a sanha vingativa, ao considerar que a única punição correta seria fazer o condenado apodrecer na prisão.
No resto da semana, quando os últimos guinchos da cuíca forem ouvidos nos estertores do carnaval, o Brasil terá que encarar novamente suas idiossincrasias e as dores do amadurecimento.
Passado um quarto de século da redemocratizacão, consolidada pela Constituição de 1988, a radicalização do debate político – que foi insuflada pela imprensa desde a primeira denúncia que levou à Ação Penal 470 – estimula os saudosistas da ditadura a tirar suas máscaras.
Saudosistas da ditadura
Segundo a revista Época, uma “marcha” está em gestação em São Paulo, nos mesmos moldes da passeata que em 1964 antecedeu o golpe contra João Goulart. A propósito de defender os valores familiares, convoca-se manifestação, com apoio de uma apresentadora do SBT que ganhou adeptos ao defender o linchamento de suspeitos de crimes, para uma passeata que deve sair da Praça da República em direção à Praça da Sé para protestar contra... contra “tudo que está aí”.
Acontece que “tudo que está aí” é resultado do processo de consolidação da democracia, com suas virtudes e vícios.
A convocação da marcha mistura o inconformismo de alguns pela decisão do STF com outras questões controversas, como a descriminalização do aborto, o direito ao casamento entre homossexuais e alguns aspectos do Estatuto da Criança e do Adolescente, mas a causa por trás da iniciativa não ousa dizer seu nome.
Na página oficial da apresentadora no Facebook (ver aqui), referendada pelo Sistema Brasileiro de Televisão, que explora uma concessão pública, há links para a campanha por uma intervenção militar, com deposição de governantes e fechamento do Congresso Nacional.
O movimento se cristalizou exatamente como reação à decisão do Supremo Tribunal Federal que reviu a condenação por formação de quadrilha imposta aos réus no caso chamado de “mensalão”.
Quem empurra o carro alegórico do atraso são personagens conhecidos de uma velha história, indivíduos que não concebem uma sociedade pluralista e democrática, que necessitam do amparo viril das armas para se sentirem cidadãos. Muitos desses personagens vociferam periodicamente sua impotência nos palanques que a imprensa lhes concede.
Do outro lado do espectro político, cresce a disposição de não permitir que o discurso antidemocrático ganhe o espaço público: militantes de movimentos sociais e correligionários do atual governo prometem ocupar a Praça da Sé para evitar que os manifestantes do retrocesso repitam a jornada de 1964.
Por enquanto, os jornais ainda não viram o potencial de risco desse eventual confronto.

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