quinta-feira, 31 de outubro de 2013

A batalha das biografias e a privacidade na internet

Por Fernando F. Stacchini, no Última Instância
Tem sido bastante interessante acompanhar a discussão sobre as biografias não autorizadas. O debate extrapolou há muito os aspectos meramente jurídicos e já se transformou numa verdadeira batalha entre liberdade de expressão e proteção da privacidade.
Do ponto de vista jurídico a questão envolve a discussão da constitucionalidade dos Artigos 20 e 21 do Código Civil que vislumbram a possibilidade de proibição de divulgação de escritos, a transmissão da palavra e a utilização da imagem de uma pessoa , bem como asseguram a proteção de sua privacidade.
De um lado há os que apoiam iniciativas como a da Anel (Associação Nacional dos Editores de Livros) que ajuizou uma Adin (Ação Direta de Inconstitucionalidade 4815) perante o STF (Supremo Tribunal Federal) questionando a constitucionalidade da necessidade de autorização prevista no artigos 20 do Código Civil e propondo que as disposições desse artigo sejam interpretadas de forma a afastar a necessidade de consentimento do biografado, por violar o principio constitucional da liberdade de expressão independente de censura ou licença.  
De outro lado há os que entendem que a publicação de biografias deve sujeitar-se à autorização prévia do biografado, sob pena de infração de outro princípio constitucional que assegura a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da imagem e da honra das pessoas.
Paralelamente às posições acirradas de cada um dos lados há projetos de lei alterando o Artigo 20 do Código Civil, para dispensar de autorização a publicação de biografias de pessoas públicas, bem como para estabelecer um rito processual mais célere para processos relativos à violação da intimidade e da vida privada.
Juridicamente, trata-se de procurar harmonizar a coexistência de princípios e direitos constitucionais e que, não raro, podem parecer conflitantes. Nessa árdua tarefa, devemos, como dizia um antigo e sábio professor, atentar não apenas para o texto das normas legais, mas principalmente para as consequências da interpretação que venha a se dar a referidos textos.
Primeiramente, deve-se esclarecer que os Artigos 20 e 21 do Código Civil não se referem expressamente a biografias não autorizadas. De fato, referidos artigos estabelecem que:
"Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais.
Parágrafo Único. Em se tratando de morto ou de ausente, são partes legítimas para requerer essa proteção o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes.
Art. 21. A vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma."
Note-se que poderão ser proibidas a divulgação, transmissão, publicação ou utilização tão somente dos escritos, da palavra ou da imagem da própria pessoa interessada e não qualquer informação a respeito de tal pessoa. Não se trata de proibir qualquer obra que contenha relatos, informações ou referências à vida ou à trajetória de determinada pessoa e que sejam de autoria de terceiros, mesmo que com fins comerciais. Ainda assim, não se poderá proibir a divulgação ou utilização de materiais (escritos, gravações e imagens) de quem quer que seja, caso tais materiais sejam necessários para fins judiciais ou para a manutenção da ordem pública.
Nesse sentido é preciso lembrar que a liberdade de expressão é fundamental para a ordem pública, para o Estado democrático de direito. E que, em sentido mais amplo, liberdade de expressão engloba não apenas o direito de manifestar-se livremente, mas também o direito de informar e de ter acesso à informação.
É importante que não se interprete esses dispositivos do Código Civil de forma a assegurar possibilidade de proibição mais abrangente. Tal interpretação poderá prejudicar não só a atividade de biógrafos, mas poderá trazer consequências nefastas para atuação de autoridades administrativas, policiais, judiciais, bem como para o pleno exercício da atividade jornalística, cinematográfica, literária e acadêmica.
Por outro lado, existir como indivíduo e poder resguardar a própria intimidade, a privacidade e os dados pessoais é essencial para a vida em sociedade e, portanto, igualmente essencial para um Estado democrático de direito. Não se pode admitir, portanto, que, em nome do direito constitucional de liberdade de expressão possa-se invadir a intimidade ou a vida privada do indivíduo. Há que se ter um limite para o exercício da liberdade de expressão e esse limite é exatamente a garantia constitucional da inviolabilidade da intimidade e da vida privada!
É verdade que essa garantia, embora elementar, embora fundamental, não é absoluta nem inflexível.  Pelo contrário, deve ser admitida com flexibilidade capaz de permitir que seja menos rigorosa em alguns casos (como no caso de pessoas públicas) e mais rigorosa em outros (como no caso de crianças e menores de idade).
Mas num mundo em que novas tecnologias permitirão, cada vez mais, a captura, a coleta e a divulgação de instantes de intimidade e momentos de suposta privacidade do indivíduo; em que provedores de acesso e prestadores de serviço serão depositários de todo o histórico de nossa existência digital (incluindo aí todos os dados de acesso, de navegação, toda criação intelectual, a correspondência, os arquivos, dados e informações pessoais); em que boa parte (senão todos) os nossos documentos, discos, livros, fotos estarão armazenados na nuvem de algum provedor que sequer saberemos ao certo onde está, me parece importante que governos, empresas e sociedade tenham clara percepção e respeito pelos limites da intimidade e da vida privada do indivíduo.

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