quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Perda de mandato: vergonha nacional corrigível

Por Luiz Flávio Gomes, no site Última Instância

No julgamento do mensalão o STF (Supremo Tribunal Federal) acertou ao determinar a perda do mandato de todos os parlamentares condenados por abuso de poder ou violação de dever funcional. Neste ponto essa é a única interpretação justa e sensata da CF (Constituição Federal). No julgamento do senador Ivo Cassol o STF errou (data vênia) ao não decretar a perda do seu mandato, transferindo essa responsabilidade ao Senado Federal.
Sobre o tema há uma regra e uma exceção (ambas previstas nas leis e na CF). Nas leis e na CF, não na cabeça de cada Ministro! A única tarefa interpretativa consiste em saber o que entra na regra (perda decretada pelo STF) e o que vai para a exceção (cassação determinada pela Casa Legislativa). Aos parlamentares condenados no caso mensalão (João Paulo Cunha, José Genoíno, Pedro Henry e Valdemar Costa Neto), o STF (por 5 votos a 4) aplicou a regra (perda do mandato decretada pelo STF).
Ao senador Cassol, também condenado pelo STF, diante dos votos dos dois novos ministros (Barroso e Teori), aplicou-se a exceção (perda do mandato a ser decretada pela Casa Legislativa). De acordo com minha opinião, os dois casos entram na “regra” (não na exceção). Dois casos substancialmente idênticos (atos corruptivos praticados no exercício da função), com tratamentos distintos. Errou o STF nesta última decisão. Estão equivocados (data vênia) Barroso e Teori.

A regra do jogo já estabelecido pelas leis vigentes é a seguinte:
O STF, quando condena criminalmente uma pessoa, compete decretar a perda do cargo ou do mandato eletivo em duas hipóteses: (a) quando se trata de crime cometido com abuso de poder ou violação de dever funcional ou (b) quando for aplicada pena privativa de liberdade por tempo superior a quatro anos. É o que diz o art. 92, I, do Código Penal. Os réus do mensalão foram enquadrados nessa lei (porque abusaram do poder, violaram dever funcional e ainda foram condenados a mais de 4 anos).
É incompreensível que ela não tenha sido aplicada inclusive para o senador Cassol, que também foi condenado por violar o dever funcional (fraude em licitações, que significa corromper o mandato público). Nos casos de agentes públicos ou políticos que atuam contra a administração pública, que corrompem sua função, a decisão sobre a perda do mandato não pode ser corporativa. Esse campo é do controle jurídico, não político. A lógica constitucional já descorporativizou o assunto, que retrocedeu com os votos de Barroso e Teori.
A decisão do STF, no caso mensalão, está em conformidade com o art. 15, III, da CF, que prevê a suspensão dos direitos políticos de quem é condenado criminalmente em sentença definitiva. Como desdobramento natural, diz o art. 55, IV, que, nesse caso, a Casa Legislativa apenas declara a perda do mandato, não tendo nada que decidir (visto que a decisão aqui é judicial, ou seja, exógena ou externa). Essa é a regra geral que comanda o assunto.
Não se pode deixar por conta do Parlamento a decisão de decretar ou não a perda do mandato (quando há condenação criminal por crimes funcionais) porque ele é capaz das maiores atrocidades morais imagináveis (em incontáveis vezes isso já ocorreu: caso Donadon, caso Renan, caso da deputada filmada com do dinheiro da corrupção na mão etc.). Um covil de malandros parasitas (salvo exceções, claro) não titubeia um segundo para acobertar a malandragem alheia (desde que algum benefício parasitário extra lhe mostre possível). É esse dado relevantíssimo que escapou da percepção dos ministros Barroso e Teori, cujos votos colocaram o galinheiro nas mãos e nas (ir) responsabilidades das raposas.
Qual é a exceção?
A regra citada comporta uma única exceção: quando o STF condena o parlamentar e ausentes os requisitos do art. 92, I, do CP (por exemplo: quando o condena a pena alternativa ou substitutiva, em razão de um acidente de trânsito), a decisão de decretar ou não a perda do mandato é endógena ou interna, ou seja, exclusiva da Casa Legislativa (CF, art. 55, VI). Essa é a exceção à regra geral dos arts.  92,I, do CP c.c. art. 15, III e art. 55, IV, da CF.

Critério da regra-exceção
O conflito aparente de normas, no caso da perda do mandato parlamentar pelo STF, se resolve pelo critério interpretativo da regra-exceção. A regra é a prevista no art. 55, IV, c.c. os arts. 15, III, da CF e 92, I, do CP, enquanto a exceção está prevista no art. 55, VI, da CF. O caso mensalão se encaixava na regra, não na exceção. O caso do senador Cassol, que corrompeu o exercício da sua função pública, também entra na regra (não na exceção). O caso Donadon, da mesma maneira, entra na regra e não na exceção (porque estamos falando de crimes graves contra a honorabilidade do cargo, patente abuso de poder e violação de dever). Todos compõem a regra. Todos devem seguir a mesma regra, já pela atual legislação e Constituição brasileira (repita-se: 92,I, do CP, c.c. art. 15, III, e art. 55, IV).
Competente exclusivo para decretar a perda do mandato (no caso de condenação criminal por crime funcional) é o STF, não a Casa Legislativa respectiva. Joaquim Barbosa, Gilmar Mendes, Marco Aurélio e Celso de Mello votaram acertadamente pela regra. O controle da corrupção na administração pública, em caso de condenação judicial fundada no art. 92, I, do CP, é jurídico, não político.
Quando o poder jurídico não faz o devido controle do agente político, fundado no devido processo legal, o poder jurídico convalida a “vulgarização do mundo” e do homo democraticus. O recado que se transmite é o seguinte: nossa sociedade (pós-moderna) parece estar de acordo com a tese de que devemos prescindir da virtude dos seus cidadãos, especialmente quando agentes públicos. Dá a sensação de que a virtude da honestidade (e exemplaridade) não seria necessária.
Claro que o juiz não pode fazer juízos morais para condenação ninguém. Toda condenação tem que ter amparo jurídico. Mas quando há amparo jurídico torna-se uma imoralidade não reprovar quem fez uso indevido da coisa pública, que consiste numa extensão inadequada da liberdade. Quem se presta a praticar e exercer as vulgaridades contemporâneas, no campo político, não pode receber nenhum tipo de aprovação, sob pena de convalidarmos incorretamente as flexibilizações éticas do mundo atual, tal como fez, por exemplo, o senhor Lobão Filho (ao dizer que a ética não é relevante).
Essa nos parece a interpretação correta do assunto em debate. É a interpretação, de outro lado, que respeita não só o conteúdo das normas envolvidas (art. 92, 1, do CP, e arts. 15, III, 55, IV e 55, VI, da CF), senão também todos os poderes constituídos. Porque será uma grave ofensa ao STF se ele declarar a perda do mandato (nos termos do art. 92, I, do CP) e a Câmara dos Deputados não acatar (desautorizar) essa decisão. Ficaria uma decisão judicial sob o crivo do Poder Legislativo. Nada mais disruptivo e assistemático. Decisão de juiz se cumpre (depois da coisa julgada, quando então não cabe mais nenhum recurso).
Os poderes são independentes e é fundamental que se respeite essa independência, mas devem ser harmônicos. Daí a necessidade de se delimitar com precisão quando o STF decreta a perda do mandato do parlamentar (decretação exógena) e quando essa tarefa é da própria Casa Legislativa (decretação endógena).

Ministro Barroso caiu numa armadilha e virou legislador
O passado do ministro Barroso não permite qualquer tipo de questionamento sobre sua competência e honorabilidade. Mas ele é um ser humano, logo, também pode se equivocar. Na verdade, ele se meteu numa grande enrascada ao decidir que o poder de decretar a perda do mandato, no caso de parlamentar corrupto condenado criminalmente, competiria ao próprio Parlamento (e não ao STF).
No século 6º a.C., Esopo escreveu incontáveis fábulas morais. Dentre elas, esta (veja Folha de 1/9/13, Ilustríssima, p. 8):
“Uma lebre sentiu sede e desceu num poço para beber da água. Após haver-se fartado da deliciosa bebida, ia sair de lá quando se deu conta de que estava confinada, pois não tinha como galgar a subida, e começou a ficar apreensiva. Nisso, uma raposa veio ter ali também e, ao deparar com ela, disse: ‘Realmente você se meteu numa grande enrascada! Pois devia primeiro resolver como iria sair do poço e, só depois, descer dentro dele”.
O ministro Barroso não podia imaginar que sua decisão geraria a confusão que gerou no caso Donadon, tendo a Câmara dos Deputados, malandramente, mantido o mandato do deputado que está preso em regime fechado, com os direitos políticos suspensos. Ou seja: não pode votar nem ser votado, mas continua deputado federal. Mais uma singularidade que só se encontra no Brasil, ao lado das jabuticabas, claro.
Mas o ministro Barroso não é a lebre do conto de Esopo. A lebre não tinha como sair da enrascada que se meteu, salvo se se transformasse em raposa. O ministro, acuado pela imoralidade ímpar do Parlamento brasileiro, achou uma saída: assumiu as funções legislativas e passou a legislar.
Vejamos os detalhes da sua técnica e construção legislativas:
A competência para decretar a perda do mandado de parlamentar malandro já condenado criminalmente pelo STF é da Casa Legislativa respectiva (aqui o ministro já caminhava fora do melhor direito, mas ainda estava dentro dos binários interpretativos do ordenamento jurídico).
Porém (agora vem a nova regra legislativa saída da cabeça do ministro), “quando se tratar de deputado cujo prazo de prisão em regime fechado exceda o período que falta para a conclusão do seu mandato, a perda se dá como resultado direto da condenação”. Onde está escrito isso no ordenamento jurídico brasileiro? Em lugar nenhum. Quem inventou essa nova regra jurídica? O ministro Barroso. Por que ele fez isso? Porque chegou no fundo do poço a imoralidade do Parlamento brasileiro ao manter o mandato de Donadon. Podia fazer isso? Jamais. Ministro não é legislador. Houve ativismo judicial positivo ou substitutivo? Claríssimo. Mas tudo foi feito para se corrigir uma injustiça brutal? Sim. Mas os fins justificam os meios? Eis a questão.

Qual a consequência da nova regra jurídica inventada por Barroso?
A seguinte: se sua regra só vale para quem está em regime fechado, ela teoricamente beneficiaria José Genoíno, Valdemar Costa Neto e Pedro Henry, porque foram condenados ao regime semiaberto. Só teoricamente (porque eles perderam o mandato). Embora possa reabrir a discussão em mandado de segurança. Só para raciocinar: como pode casos substancialmente idênticos (dos mensaleiros, do senador Cassol, de Donadon), onde todos foram condenados criminalmente por desvio de dinheiro público, com violação grave de dever funcional, receber tratamentos diferenciados?

Há alguma saída inteligente e sensata para tudo isso dentro do STF?
Sim. Qual? Recolocar o assunto em pauta e redefinir a posição majoritária do STF, nos termos do que ficou decidido no caso mensalão (que coincide, em linhas gerais, com a proposta de emenda constitucional do senador Jarbas Vasconcelos, que tramita pelo Senado). A melhor coisa que um juiz deve fazer no exercício da jurisdição é seguir o ordenamento jurídico vigente e não ficar inventando regras novas, que trazem muita insegurança.

2 comentários:

  1. Anônimo5/9/13 22:13

    Errados? Erradíssimos como costuma dizer o poster (íssimos...kkk). Coisa planejada.

    ResponderExcluir
  2. Novela interminável.
    Todos devem ver o sol nascer quadrado.
    Absurdo dos absurdos, daqui à pouco, os advogados de defesa vão exigir a criação de um outro tribunal acima do Supremo.
    Seria o “Super Supremo”, onde todos os embargos infringentes e “adstringentes” seriam aceitos, enfim o paraíso dos ladrões de colarinho branco…

    ResponderExcluir