quarta-feira, 19 de junho de 2013
Cento e dois anos de jornada feliz
Parece que foi ontem, podemos imaginar perfeito a cena: 19 de novembro de 1910, uma tarde acalorada de sábado na capital morena. O velho navio Clement, proveniente dos Estados Unidos, atraca no porto da cidade. Para ser preciso, fica fundeado “lá fora” porque não havia lugar no ancoradouro. Não era recenseamento nesta Belém, porém, todas as hospedagens do cais estavam ocupadas. Navios. Bandeiras de várias partes do mundo carregavam a nossa borracha, o nosso cacau, a nossa madeira.
Agora, botes seguem em direção do gigante. Precisam auxiliar famílias inteiras que moram sobre o Atlântico há duas semanas. Não existem as nossas prioridades. O capitalismo organiza o desembarque: primeiro, a primeira classe. Quem viveu em camarotes, precisa rápido de conforto. Quem sobreviveu nos porões, pode esperar mais um pouco. O motor está bem fraquinho, diminuindo calor e barulho no estranho subsolo. O escuro já não é tão negro. O odor de vômitos na serragem passa despercebido. Apesar de tudo, uma jornada feliz vai começar daqui a pouco.
De pé e saltitantes, dois jovens suecos espiam curiosos a cena. A cidade lhes parece linda. Não tem selva nem índios armados. Um postal digno da Europa, assim pensam. Agora, sentados nessa lâmina de árvore que desafia as águas, sentem a maresia arrastá-los ao Ver-o-Peso. Mas não é ali o esperado desembarque. A jornada começará na Escadinha, antecipando meio século de Armstrong: um pequeno passo para o homem, um gigantesco salto para a fé.
Então, Berg e Vingren tocam o solo parauara. Primeiros passos da feliz jornada. E vão alegres subindo a 15 de Agosto, pois Vargas ainda não era governo. Caminho feliz até a Praça da República, lugar de orar e degustar mangas, que logo encherão seus bolsos em tempos da Belle Époque. Monumentos impressionantes de mármore. O Teatro está aberto, derramando suntuosidade por suas janelas e portas. É mesmo uma jornada de paz. Tem arte, tem manga, tem fé. Pousada humilde na João Alfredo, onde as últimas moedinhas garantem o descanso desses heróis em nosso meio.
Pela manhã bem cedo, a jornada recomeça. Estrada sem fim e desconhecida. A ordem divina só disse: “Pará”. Um bondinho se apresenta para apressar a carreira. E lá vão os jovens com a Bíblia em punho, abrindo caminho com a espada de Deus. Uma parada na João Balby, um antigo templo batista. Aqui, ficarão hospedados até junho que vem. Semi-hospedados, é bem verdade, pois logo estarão no Marajó. Jornada feliz sobre águas. Tajapuru. Soure. Anajás. Açaí. Camarão. Pupunha. Jornada feliz em tantos igarapés e furos. Aventura de felicidade nas travessias da baía em plenas águas de verão.
Logo, a jornada pegará os trilhos. Santa Izabel, Vila São Luiz, Capanema. Bragança, onde as pegadas chegaram de noite e esperaram o sino bater na alvorada. Jornada feliz em Quatipuru, onde toda a igreja, presa de noite, foi obrigada a capinar o cemitério até o ocaso seguinte. Feliz, em marcha triunfante pelas ruas. Em cultos apedrejados. Na fuga de Vingren em Mosqueiro. Jornada com os caranguejos do igapó, que testemunharam o fracasso da emboscada e viram cães desolados passarem ao lado do missionário. Feliz porque cumpriam o plano de Deus.
Não demorou muito, e a jornada ganhou toda a Nação. Viveremos um pentecostes caboclo. Belém está cheia de estrangeiros, trabalhadores da borracha e empresários do ouro branco. Banco de Boston, Banco da França e Casas portuguesas enchem a XV de Novembro, onde desfila Wall Street. Ergue-se a bolsa de valores. Mas, no topo é mais arriscada a queda, então não suportamos a Ásia: o capitalismo não respeita a si mesmo. A concorrência acorda o sonho equatorial.
E, quando isto acontecer, a jornada descerá o país. A mão-de-obra humana ganha farda celestial. Cada crente, uma semente de fogo. Logo alcançará o Nordeste: Ceará, Paraíba, Pernambuco, cada qual receberá um filho seu. Logo chegará ao ponto extremo: Amapá, Amazonas, Rio Grande do Sul. Cruzará o Atlântico para agradecer Cabral. Missões por todos os lados. Está fundada por Deus a Assembleia.
Exatamente hoje, a Assembleia de Deus completa 102 anos de existência, pois sua organização só aconteceu em 18 de junho seguinte ao desembarque. Agora, são milhões e milhões de passos, a instituição brasileira de maior penetração no território nacional. Algo assim que deve encher todos os paraenses de orgulho. 102 Anos de Jornada Feliz. Vamos todos ao Centro de Convenções festejar hoje, 19 horas, ali na Augusto Montenegro. Parabéns recíprocos!
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RUI RAIOL é escritor
www.ruiraiol.com.br
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