quarta-feira, 22 de maio de 2013
Bule, xícara, caçarola
Alguém já disse que a escola é o nosso segundo lar. Nada mais certo. A escola detém boa parte de nossa memória biográfica, capaz até mesmo de dominá-la. Vamos lembrar um pouco como era essa casa há algumas décadas.
Quando me entendi por gente, a escola estava bem perto. Mas nada de prédios, bandeiras e hinos. Não. A escola existia de modo bem particular e nada público. Eram casas familiares, onde podia haver dez, cinco ou apenas um aluno. À frente, sempre uma “tia”, mas nada semelhante às tias de agora. Não. Aquelas tias possuíam autoridade de pai, mãe e avós. E possuíam também nomes engra- çados. Lula, Beca e Maroquita foram algumas mestras que tive em Vigia.
Nessas escolas, a gente ia para aprender a ler, escrever e fazer conta. Nada de rabiscar nada. Sem direito a lanche e recreio. Estudo. Estudo. Estudo. Em pouco tempo, o menino aprendia a Cartilha do ABC. Aprendia a “tirar” da lousa e a fazer ditado. E ai dele se não aprendesse! Se escapasse até quinta, cairia na rede da incompreendida sabatina da sexta. Tabuada. Casa de dois, três e quatro. Casa de sete, oito e nada de noves fora. Multiplica. Divide. Prova e comprova.
Não eram aulas de reforço, não. Era o ensino de base e fundamental, que preparava a garotada para não passar vergonha na escola pública. Ih! Nem me lembro quando aprendi, mas sei que foi bem cedo. Quando minha avó me matriculou na Escola Professor Teodoro Rodrigues, eu já lia corrido. Marilza Brasil, minha primeira professora, não teve muito trabalho.
Hoje, no tempo do bulling, costumo brincar que não sofri apenas o “bule”, mas a cozinha inteira. Levei bule, xícara, colher, a bandeja completa. As tias estavam autorizadas a disciplinar a turminha. Para aprender a ler, escrever e fazer conta direito, fiquei de joelhos sobre milho, tampinha de refrigerante (parte cortante para cima) e levei muitos bolos. Houve um dia que cheguei com as mãos inchadas da r(égua) da professora. Quando mostrei isso para a vovó, esta disse: “Oh, professora boa! É dessas que eu gosto”. Bem, eu naturalmente não gostava nem concordo com maustratos, mas o método foi eficaz comigo. Aprendi a ler e até escrever para jornais.
Mas, sendo extensão da casa, a escola também era lugar de travessuras e até de vinganças. As tias precisavam ter muito cuidado com a gente. Menino é terrível. Descobriram que réguas podiam se partir ao meio com um simples cabelo na palma da mão. E lá vem a professora disciplinar a gente. E lá vai pro ar mais uma palmatória de acapu. Um dia, quando acabamos o estoque do instrumento de tortura, a professora, muito aborrecida, nos mostrou uma enorme tábua em pé: “Estão vendo aquela tábua? Vai virar tudo régua”. Se fez, não sei, porque saí daquela escolinha antes. Ufa!
Escola, nosso segundo lar. Se os pais podiam bater, as tias também podiam repetir a educação doméstica. Tempos difíceis, que aterrorizavam a gente, mas acabavam nos ajudando na marra. Era assim. Nada de creche, pré-pré ou coisa do gênero. Não. A gente já entrava no ringue direto. A vida era literalmente uma luta. Batiam. Batiam. Batiam. A gente apanhava, apanhava, apanhava. Ah segundo lar! Nenhuma saudade até essa fase.
Indo para a escola pública, a coisa melhorava em parte. Agora havia uma turma. E quem se enturmava bem, ótimo. Quem era meio “désolé”, como eu, penava. A garotada queria brincar. No primeiro dia de aula, os meninos andavam sobre as carteiras e punham o cesto de lixo na cabeça enquanto a professora Marilza se dirigia à apresentação na classe. E toma “bule”: menino “esperando lá fora”, pedra atirada dentro de bagaço de laranja, apelidos, chiclete no assento, e o mal samaritano do balanço, que deixava a gente lá no alto e depois punha a gravidade à prova. Bule, xícara, caçarola, tudo.
Segundo lar mesmo: se não tinha comida em casa, a esperança estava na escola. Durante alguns anos estudei no turno intermediário, entre 11h e 14h, mais ou menos. Horrível. Muita fome. Às vezes, ficávamos até três dias sem comida em casa. Quando tocava a campainha, os meninos saíam perguntando entre si o cardápio. “E tu, o que vais comer?”, um engraçadinho me acertava. “Gurijuba com feijão!”, era minha resposta de sonho. Em casa, nem xibé.
Mas as boas impressões da escola são muitas – acredite. Tanto que, tendo a intenção de falar até da universidade, não consegui sair do primário. Depois, a gente prossegue. Vamos falar do Rodrigues Pinagé, do Kennedy, do antigo Colégio Comercial do Amapá, do Colégio Amapaense e, enfim, da UFPA. Quantas casas tivemos.
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RUI RAIOL é escritor
www.raiol.com.br
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