quarta-feira, 20 de março de 2013
Dialética surda
O Brasil vive tempos de revisão de valores. Saindo de uma história recente de ditadura militar, a nação torna-se referência internacional em questões de alguns direitos humanos. É o caso da sexualidade, e todos os elementos intrinsicamente ligados ao tema. Casamento homossexual, aborto e adoção por pessoas de mesmo fenotipo sexual são itens fundamentais desse debate. Preconceito. Intolerância. Crime. Homofobia. Eis um dicionário muito em voga.
Porém, não se pode deixar de apontar uma atitude nada democrática por determinados grupos defensivos. A dialética que reclamam para si parece-nos ter apenas uma direção. Ativistas radicais exigem o direito de gritar, porém, recusam-se a ouvir vozes contrárias. Dialética surda. Autoritária. Antissocial.
Hoje, é incrível como, em nome de determinada liberdade, a coletividade pode ser exposta a meia dúzia de pessoas sem o mínimo respeito pelos valores plúrimos da sociedade. Ativistas podem, por exemplo, fechar a Avenida Paulista para fazer apologia ao que acham certo. Mas ninguém se preocupa com milhares de famílias que têm o direito de criar seus filhos longe dessa marcha pedagógica. Um milhão de pessoas têm o direito de apregoar a céu aberto as suas preferências, opções ou naturezas diferentes da heterossexualidade. Cento e noventa milhões devem ficar calados, reclusos, pois, se alguém ousar discordar, logo será homofóbico. Dialética surda.
Há poucos dias, muita gente protestou contra a escolha do deputado Marcos Feliciano para a presidência da Comissão de Direitos Humanos da Câmara Federal. Razão? O candidato seria homofóbico. As provas? Um inquérito no STF, quando o nosso ordenamento jurídico exige sentença irrecorrível para chamar alguém de culpado. Outra prova? Um suposto vídeo onde o parlamentar, que é pastor, teria afirmado que os africanos são amaldiçoados. Quem foi investigar a fundo? Na verdade, qualquer leitor mediano da Bíblia pode estudar essa citada maldição proferida por Noé sobre sua descendência. Eu, particularmente, não acho que haja povo amaldiçoado. Porém, a história bíblica pode afirmar isto ou aquilo. O que eu posso fazer? Rasgar a Bíblia? Queimá-la? Isto não será intolerância? A mim, cabe interpretar as Escrituras dentro do seu contexto histórico e cristão, cuja base é o amor e a tolerância. Mas, o que foi escrito, foi escrito.
Embora eu discorde de algumas atitudes eclesiásticas de Marcos Feliciano – nem ache que pastor deva estar no parlamento –, não é por isso que vou me posicionar contra sua eleição. A democracia pressupõe a tolerância. Pressupõe ouvir. É mais prudente que se aceite qualquer candidato juridicamente hábil a qualquer posto público. Depois, pelo exercício do controle social, se o camarada não prestar mesmo para a função, requeira-se sua exoneração. Mas isto dentro do devido processo legal. É assim que grupos de nosso país estão querendo ser tratados. É assim que devem tratar.
A qualquer hora, o espaço da coletividade brasileira pode ser invadido pelo nudismo. Hoje, você vai a uma exposição no Masp, e lá está um nudista praticando arte. Você vai passear numa praça, eis gente despida em plena arte contemporânea. Ninguém perguntou se todos gostariam de ver esse tipo de coisa. As famílias não foram ali assistir a um cine pornô nem à alguma praia de nudismo. Elas estavam numa praça pública. Elas tinham seus valores. Quem se importou com a coletividade? Em nome de uma arte discutível, uma só pessoa expõe todo o grupo social presente. Expõe toda a comunidade, que é obrigada a acompanhar esse tipo de exposição, inclusive sua cobertura pela mídia. Dialética que adora expor as suas razões, mas não suporta opinião contrária. Dialética surda.
Agora, é a vez do Papa. Mal Francisco sentou na cadeira, e as críticas começaram. Na Argentina, entidades ligadas à questão homoafetiva expressaram formalmente sua indignação pela eleição cardinalícia. E daí? Por que até o Papa tem de concordar com tudo que há na sociedade? Na verdade, cabe à Igreja ser Igreja. O dia que todo mundo concordar com tudo, estaremos mortos. Estaremos deitados lado a lado, dividindo um dos pedaços de chão mais caros do Brasil. De pé, a gente vai questionar, duvidar, crer, rejeitar etc. Desde que haja tolerância, tudo bem. A dialética, enquanto método de diálogo, precisa ter mão dupla. Dialética surda é autoritarismo. Desrespeito. Abuso. Afronta. Quem quer ser ouvido, precisa aprender a ouvir. Ainda que todas as reivindicações homoafetivas sejam atendidas, o Brasil seguirá sendo um país religioso. Ouça-se também o Papa.
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RUI RAIOL é escritor
www.ruiraiol.com.br
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