sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Círio Cabano



ANDRÉ NUNES

“Paraense, sou ateu. Filosoficamente, materialista. Mas, acima de tudo, sou devoto de Nossa Senhora de Nazaré. Este último atributo, no mês de outubro, transcende os demais. É inerente ao ser paraense. Durante algum tempo, no auge do obscurantismo ideológico da juventude, ainda tentei renegar minha devoção, porém, romântico inveterado, há muito deixei de remar contra a maré. Mergulhei de cabeça no paraensismo: açaí, tacacá, Ver-o-Peso, marés, rios e ilhas, canoas e torço nu. E isso tudo, à imagem do próprio rio amazonas, como em um caudal, deságua em Belém no segundo domingo de outubro.
A colossal procissão do Círio, com seu milhões de romeiros, começa na Catedral da Sé e termina cinco ou seis quilômetros depois na Basílica de Nazaré. Mas um olhar atento vai além, vê que aromaria começa em cada furo, rio, igarapé, ilha ou beiradão. Canoas, ubás, caxiris, barcos a motor, velas ou remo. Começa nas palafitas e nos barrancos. Nos quintais das cidades, no porco cevado, no patarrão, no ralar da mandioca, no tipiti e no moer da folha de maniva, matéria-prima para o almoço do Círio – maniçoba e pato no tucupi. Farto e generoso. Para a família, os amigos e quem mais chegar.
O Círio começa no vestido de chita com babados, decote comportado e comprimento abaixo dos joelhos. Calça e camisa de manga comprida, novas, as únicas mudas de roupas compradas no ano, mas estreadas no Dia da Festa. Sapatos, sandálias, baixas ou de salto.
Tênis? Nenhum. Para acompanhar o Círio de Nazaré se vai descalço. Naturalmente. Começa com banho-de-cheiro. Vinde-cá, priprioca, patichouli, orisa, pau-cheiroso, chama, pau-rosa, catinga-de-mulata. E se vem de todos os cantos do Estado do Pará que, em outubro, se transmuda para além das fronteiras geopolíticas. Invade o Maranhão, o Amazonas, o Amapá. É como se fosse o Estado de Nossa Senhora de Nazaré. Esse é o núcleo central tangido pelas águas, senhora de todos os destinos. Essa é a procissão cabana de antes da estrada, do asfalto, do ônibus, do avião, do arranha-céu, do apartamento, do estacionamento proibido. Esta nova tribo do fast food também é bem-vinda. Por adesão, é claro. No Manto da Virgem e no coração cabano há sempre espaço de sobra. Apenas há que aderir ao espírito secular do Círio. Ficar mundiado pelo bom e pelo bem. Sentir-se igual. Caminhar descalço.
É por tudo isso, pelo peso dessa enorme bagagem da cultura paraense, que todos os anos, quando passa a Berlinda da Santa, este velho comunista se emociona e chora.”

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Esse artigo do escritor ANDRÉ COSTA NUNES, 73 anos, foi publicado em 2007, na revista Veja Belém.

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