sexta-feira, 17 de agosto de 2012

Respeitável público

ANTÔNIO CARLOS DE ALMEIDA CASTRO e PEDRO IVO VELLOSO CORDEIRO

"As figuras imaginárias têm mais relevo e verdade que as reais"
Fernando Pessoa


No premiado documentário "Arquitetura da Destruição", Peter Cohen defende que o nazismo só foi palatável para a população por ter sido apresentado como um projeto de embelezamento do mundo. Retratando Hitler como artista frustrado, Cohen argumenta o intento destrutivo do nazismo se fundou em uma poderosa estética, impulsionada por uma eficiente propaganda.
Não se quer aqui tachar ninguém de nazista ou comparar alguém a Hitler. Busca-se mostrar, pelo exemplo extremo, o poder destrutivo da estética.
Ultimamente, tem se visto que algumas acusações, na boca de delatores ou formalizadas em denúncia, procuram sofisticar a sua narrativa e emprestar-lhe uma organização e beleza fora do comum. As acusações são recheadas de adjetivos. O fato tido como criminoso é guarnecido de uma série de estruturas, núcleos e funções, em um desenho perfeito.
Para esse acusador, o regozijo é maior quando não há provas, pois assim ele terá grande espaço para o seu design. Terá liberdade para conceber e desenhar o que considera a parte oculta do iceberg. Nessa parte oculta, dá vazão a todo o seu projeto de embelezamento ou frustração por não ser um artista de sucesso.
O "mensalão" é o maior exemplo dessa nova modalidade de design. A acusação não se limitou ao que há de efetivamente tangível no caso: operações financeiras entre partidos políticos e instituições financeiras. O toque estético foi dado por um pretenso delator, que, não por coincidência, é um cantor frustrado.
Do que havia de concreto, erigiu-se um enredo belo e palatável para o público, embora falso, criado: o pagamento sistemático, organizado e mensal para parlamentares. O melhor propagandista e marqueteiro não escolheria nome melhor e mais ao gosto da população: "mensalão".
Já do acusador público esperava-se sobriedade. Afinal, ele estava lidando com um fato envolto em uma disputa política, destinada a desmoralizar um partido, como reconheceu recentemente o próprio delator.
O que se viu foi justamente o contrário. O acusador público tomou gosto pela arte do escândalo e sofisticou a estética da acusação, qualificando-a como "sofisticada organização criminosa", "profissionalmente estruturada" em "núcleos". Expressões como "engrenagem criminosa", "organograma delituoso", "engenharia criminosa" conferiram ar monumental à acusação.
O grand finale veio com as alegações finais, um memorial e uma sustentação oral proferidas já por outro acusador público. O ponto em comum dessas manifestações foi o gosto pela adjetivação. O edifício artístico passou a ter uma pomposa qualificação: o "mais atrevido e escandaloso caso de corrupção do Brasil".
Poucos não reconheceriam que  estética e marketing foram fundamentais para o sucesso do projeto político destrutivo do pretenso delator. O que poucos têm ressaltado é que também os acusadores públicos buscaram empregar uma bela arquitetura e um cativante enredo para o sucesso de público de sua tese.
O STF fará um julgamento técnico, não estético. Pensando no público, o acusador deve ter linguagem sóbria, clara, comedida e prosaica. Os fatos da vida merecem ser retratados com a mais sofisticada estética. Todavia, quando se pede a condenação de pessoas, não deve haver espaço para a estética, sob pena de se tornar o processo um jogo cruel.
Caro leitor, caso você se depare com uma acusação muito organizada, bela e sofisticada, suspeite! Você pode estar lidando com um artista frustrado ou um acusador arquitetando a destruição de alguém.
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ANTÔNIO CARLOS DE ALMEIDA CASTRO, 54 anos, e PEDRO IVO VELLOSO CORDEIRO, 28 anos, são advogados criminais e defendem Duda Mendonça e Zilmar Fernandes na ação penal 470.
Artigo publicado originalmente na Folha de S.Paulo

Um comentário:

  1. Bom dia, caro Paulo:

    sugiro aos brilhantes e poéticos - porque não? - juristas que leiam “Eichmann em Jerusalém: A Banalidade do Mal”, de Hanna Arendt.

    Ainda que a comparação pareça exagerada, entre Eichmann e nossos mensaleiros, o subtítulo cabe bem aqui: a banalidade da corrupção. A banalização da perpetuação no poder a qualquer preço.

    Eichmann matou milhares, cruel e diretamente. Justificou friamente seus atos.

    Quantos foram privados de saúde, educação, segurança, trabalho, nos caixa dois acumulados de favores, nos desvios cínicos de dinheiro público? Quantos foram afrontados pelas defesas acrobáticas no julgamento recém findo no STF?

    O dinheirinho recebido tão honesta e transparentemente por Paulo Rocha (R$ 800.000,00???) - para ficar só na "prata da da casa" - construiria 10 escolas em dez comunidades rurais. Isso é o que? Acrobacia sofisticada?

    Curioso é que os luminares que assinam o texto enveredam pelos caminhos já banais da hipocrisia e do cinismo nacional: cobram sobriedade, isenção, comedimento, logo eles, que encerram essa "pérola" recomendando ao caro leitor que "... caso você se depare com uma acusação muito organizada, bela e sofisticada, suspeite! Você pode estar lidando com um artista frustrado ou um acusador arquitetando a destruição de alguém".

    Vamos ao que interessa: como uma dos tais leitores,agradeço a recomendação e, aproveitando o ensejo, recomendo também:

    "Se a função do domínio público é iluminar os assuntos dos homens, proporcionando um espaço de aparências onde eles podem mostrar, em palavras e actos, para o melhor e o pior, quem são e o que sabem fazer, então as trevas chegam quando esta luz é apagada pelas "faltas de credibilidade" e pelo "governo invisível"..."

    Hanna Arendt - Homens em tempos sombrios.

    Abração, caro Paulo.

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