segunda-feira, 18 de junho de 2012

O espaçoso sítio das ideologias


Durante o século 18, início do século 19, o nascente poder liberal conviveu sem pudor com a escravidão. Mas, se for correta ou pelo menos razoável a hipótese marxista do caráter interessado, logo faccioso, das ideologias, torna-se relativamente fácil mapear o lugar das ideias econômicas e políticas hegemônicas em um determinado contexto. A compreensão do liberalismo econômico e político, disseminado no Ocidente ao longo do século 19, depende da resposta a questões cruciais: A quem interessava o livre-comércio entre as nações depois da crise do exclusivo colonial? A quem interessava o domínio dos meios de produção a partir da Revolução Industrial Inglesa? A quem interessava a manutenção do poder no período pós-revolucionário?
Ah, as respostas já foram dadas exaustivamente pela historiografia que explorou a situação das metrópoles e das ex-colônias no processo de formação dos Estados latino-americanos. O valor explicitado nessas plataformas econômicas e políticas era sempre o mesmo: liberdade. O seu correlato ideológico chamava-se liberalismo. O conteúdo concreto e pragmático do liberalismo efetuava-se em termos de exploração e dominação. As denúncias de Engels deixaram patente o grau de superexploração da classe operária na Inglaterra dos meados do século 19.
Pela liberdade de iniciativa do empresário, propriedade e capital desfrutavam de uma autonomia quase absoluta: pretensão que já fora sancionada teoricamente pelo mais idôneo inspirador do liberalismo inglês, John Locke. Pensador do interesse dos proprietários, Locke não hesitara diante da consequência extrema de seu discurso, ou seja, a aceitação do cativeiro do vencido em caso de guerra.
A França revolucionária conheceu, em 1793, em uma sessão da Convenção, um momento de glória democrática quando aboliu a escravidão em suas colônias. Durou pouco a decisão dos convencionais. Oito anos depois, Napoleão cedeu à pressão dos proprietários das fazendas antilhanas e restabeleceu o cativeiro. Logo após a queda de Napoleão e a subida ao trono de Luis XVIII (1814), não se alterou a situação de 300 mil escravos da Martinica, Guadalupe, Guiana, Senegal e Reunião. Quando, finalmente, a Revolução de 1848 a aboliu, não o fez sem indenizar fartamente os senhores, validando assim a legitimidade da propriedade de homens por homens.
Mas não foi só na Inglaterra e na França, bastiões do liberalismo burguês ocidental, que a conveniência com o regime de trabalho compulsório conheceu longa duração. As demais metrópoles europeias, igualmente regidas por diplomas liberais, seguiram o mesmo caminho: Portugal, Espanha, Holanda, Bélgica e até os Estados nórdicos como Dinamarca e Suécia, que exploravam colônias agroescravistas em ilhotas caribenhas, tardaram em decretar o fim da nefanda instituição. Não há, portanto, por que isolar o Estado brasileiro como caso único e farsesco de coabitação da ideologia liberal com uma prática escravista. Cá e lá... O lugar dessa triste fusão era o do capital fundiário e da rede de interesses comerciais e políticos que o reproduziam.
No clima ético do novo liberalismo, democrático e abolicionista, formaram-se políticos e intelectuais que guardam um ar de família, apesar das conhecidas diferenças individuais: Tavares Bastos, André Rebouças, Joaquim Nabuco, Rui Barbosa, Luiz Gama, José do Patrocínio. E Machado de Assis? É preciso ler a sua produção jornalística dando-se ênfase às crônicas de fundo político escritas na década de 1860. Nelas se reconhece o ideário do novo liberalismo. Liberal e monarquista, tal parece ter sido a convicção constante de Machado.

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SERGIO BARRA é médico e professor
sergiobarra9@gmail.com

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