quarta-feira, 13 de junho de 2012

A ilusão de se cobrir a superfície da Terra


Milhares de edifícios. Horizonte loteado. Ruas movimentadíssimas. Shoppings. Multidões aguardam a hora da travessia. Periferia. O nível da moradia baixou. Construções simples formam um tapete confuso. Quintais. Campinhos. Estrada. Mais à frente, plantações a perder de vista. Tabuleiros gigantescos que, do alto, lembram o mapa político americano. Olhando assim, nem parece, mas estamos falando da superfície da Terra.
É impressionante quanto podemos esquecer de nossa localização espacial. Construções humanas tendem a esconder cada vez mais essa realidade. Estamos sobre o planeta, mas nem sempre percebemos. O chão que modelamos com dinheiro é o topo do mundo. Não é muito diferente da experiência de Antoine Saint-exupéry em seu fantástico "O Pequeno Príncipe". Ganhamos dele mais no tamanho e menos nas personagens.
Quem mora em área campestre, ainda consegue visualizar sua localização no mundo. Não há prédios para lotear o horizonte. Então podemos ver o desenho da abóbada celeste. E, como as construções são baixas, dá para notar que estamos sobre uma imensa base.
Nos anos que vivi em Macapá, gostava muito de visitar o Marco Zero, o exato local onde passa a linha do Equador, latitude zero do planeta. Nesse tempo, anos oitenta, não havia bairro ali. Para onde olhávamos, o horizonte estava limpo. Então, era bem clara a percepção da curvatura da Terra.
As cidades produzem uma ilusão de ótica. De repente, você está em um fabuloso shopping center e nem sem dá mais conta: aquilo ali é a superfície da Terra. Recoberta. Enfeitada. Polida. Mas é. Na verdade, nós apenas colocamos uma capa sobre o mundo. Quem é pobre, usa revestimento de segunda. Ricos, granito, porcelanato, o melhor dos melhores. Porém, arrancando-se esse luxo, o que temos é terra. Barro. Pó.
Ninguém se iluda, dizendo-se dono de algum pedaço do mundo. Bobagem. Ninguém é dono de nada. Dono é Deus, que criou e manda em tudo. A gente apenas brinca de esconde-esconde. Olhamos um pedaço de chão, e batemos no peito, dizendo: "Meu!" Conversa. No máximo, conseguimos medir a superfície. Ninguém, por mais rico, conseguiu fatiar o seu quinhão. Loteamento, gleba, quadra, hectare, metro, quilômetro... É tudo linguagem desse esticar de linha. Medida horizontal. Até que esbarremos em um vizinho brabo e igualmente confuso. 
A consciência de que estamos sobre a superfície da Terra é essencial para quem busca amadurecimento. Isso mata vaidades. Isso cria vida verdadeira. A partir dessa ciência, não olharemos mais a nossa casa do mesmo jeito. Continuaremos varrendo, lavando e polindo. Mas saberemos que apenas ocupamos um pedaço do mundo. O que importa não é esse tapete. Importa mesmo a base, o chão, o planeta que se estende quilômetros e quilômetros debaixo da nossa cama. Só alguns centímetros abaixo, e nada mais existe de tudo quanto usamos para cobrir o mundo. Segue-se solo, subsolo, metais ardendo em chama, como nos clássicos de Júlio Verne. Vivemos sobre o fogo, o qual  nunca poderemos cobrir.
Os mares e oceanos, porque permanecem nus, ainda nos trazem uma real contemplação da Terra. Deve ser por isso que gostamos tanto de água. No mar, não existem cobertores. O chão está um pouquinho longe. Não o vemos. Todavia, a ausência de obstáculos visuais nos permite enxergar um pouco dessa verdade. Pena que, ao pegarmos a estrada de volta, já vamos achando tudo muito nosso. Tudo muito fixo. Mas, o asfalto é apenas um tapete. Quando é.

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RUI RAIOL é escritor

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