Sabemos que o individuo está em posição de subordinação aos poderes públicos, vinculando-se ao Estado por vedações e mandamentos (teoria dos quatro status
Logo, a aplicação dos direitos fundamentais nas relações entre o Poder Público e o particular não se discute. Mas será possível aplicá-los (os direitos fundamentais) nas relações privadas, ou seja, entre particulares?
Como contraponto à teoria vertical surgiu a da eficácia horizontal dos direitos fundamentais entre as relações privadas.
Parece que aplicar princípios fundamentais (direito à vida, isonomia, entre outros) nas relações humanas seja uma coisa óbvia, fácil, mas não é bem assim. Quer ver?
O condicionamento de atendimento médico-hospitalar emergencial à exigência de garantias financeiras tem sido prática comum em nosso País e justificada pelo princípio da livre iniciativa, no qual a organização e a atuação do setor produtivo estão orientadas pelas forças de mercado, a "mão invisível" a que se reportou o economista Adam Smith.
Ninguém discute que na questão existe intensa relação entre particulares (individuo versus empresa prestadora de serviços).
Nossa Constituição alberga o princípio da livre iniciativa, norteador de nossa ordem econômica, que tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social.
Esse princípio convive com outros, como seja o do direito à vida, afinal não teria sentido se antes não fosse assegurado o direito de estar vivo. De passagem, merece registro o da liberdade, cuja ausência, segundo alguns, levaria a existência humana a não ter sentido.
Inexiste hierarquia entre princípios constitucionais e, na eventual colisão entre os valores assegurados em seus textos, o conflito aparente é solucionado por meio de um juízo de ponderação, prevalecendo aquele que mais deva ser respeitado no caso concreto.
Veja-se o seguinte exemplo. O princípio da livre iniciativa garante a prestação remunerada de serviços médicos, com vistas a assegurar não só a existência digna do profissional da saúde e de sua família, como, também, da empresa onde trabalhe e dos seus empregados (existência digna). Se a remuneração tiver de ser garantida ou paga antes da prestação dos serviços médicos, sem alguma circunstância mínima comprometedora da vida do paciente, a exigência estará garantida pelo princípio da livre iniciativa.
Diferente, porém, do caso em que a garantia ou o pagamento são exigidos para o atendimento medido-hospitalar emergencial, porque decorreria colisão natural com o princípio do direito à vida em seu sentido mais estrito, o qual deve ser preservado, fazendo que a livre iniciativa não confronte com sua finalidade (ditames da justiça social).
Veja-se que, neste caso, usou-se a técnica da ponderação e da eficácia horizontal dos direitos fundamentais.
Temos a impressão de que não foi por menos que o Estado, para garantir essa eficácia, recentemente editou a Lei nº 12.653, de 28 de maio de 2012, incluindo no Código Penal (art. 135-A), na parte reservada aos crimes contra a pessoa, a conduta exigir cheque-caução, nota promissória ou qualquer garantia, bem como o preenchimento prévio de formulários administrativos, como condição para o atendimento médico-hospitalar emergencial, cuja pena é de detenção, de três meses a um ano, e multa, aumentada até o dobro se da negativa de atendimento resultar em lesão corporal de natureza grave, e até o triplo se resulta a morte.
O bem jurídico protegido pela norma penal é a própria vida. O crime é formal, bastando a exigência da garantia ou do preenchimento prévio de formulários administrativos para que o agente incorra nesse modelo de conduta proibida. Eventual garantia dada ou preenchimento desse documento trata-se apenas de exaurimento do delito.
O crime pode ser cometido por qualquer pessoa - e não só pelo médico, pelo gerente ou pelo diretor do estabelecimento hospitalar - eis que se trata de infração penal comum.
É, também, instantâneo, cuja consumação não se prolonga no tempo, como ocorre com o sequestro (enquanto durar a privação da liberdade da vítima).
Como toda atividade delituosa, é necessário o dolo na conduta do agente, consubstanciado pela vontade livre e consciente de exigir a garantia ou preenchimento do formulário para atendimento médico-hospitalar emergencial. Daí ser difícil que mero empregado incorra nesse novo modelo penal, ainda mais se pressionado, pelo proprietário, diretor ou sócio do estabelecimento a ter essa conduta, porque lhe faltaria o dolo na conduta.
Apesar do esforço do legislador, cumpre-se registrar que as penas são brandas. A propósito, em crimes cujas penas máximas não ultrapassam dois anos o flagrante só é lavrado se autor do fato não se compromete a comparecer em juízo para a audiência, além de haver, caso denunciado, a possibilidade da transação penal ou da suspensão condicional do processo, já que a pena mínima é inferior a um ano.
O futuro dirá se essas sanções serão capazes de impedir o delito ou de relembrar que o juramento de Hipócrates não pode ser abortado nem mesmo antes de o enfermo ingressar no hospital.
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ROBERTO DA PAIXÃO JÚNIOR é especialista em Direito do Estado
O texto é bom, e as ponderações sobre quais direitos devem prevalecer são pertinentes.
ResponderExcluirPena que a alusão ao juramento de Hipócrates, no finalzinho da exposição, não faça sentido nenhum, apesar de aparentemente estar na moda entre os não-médicos.
Se voltarmos ao próprio texto, poderemos tranquilamente constatar, pela própria argumentação utilizada, que a culpa pela cobrança de uma garantia financeira antes do atendimento emergencial NÃO RECAI SOBRE O PROFISSIONAL FORMADO EM MEDICINA.
O médico tem, sim, a obrigação de lutar enquanto possível pela vida de um paciente, mas este paciente precisa antes dar entrada no estabelecimento onde o médico está prestando serviço.
O médico NÃO TEM a obrigação (e nem a capacidade, diga-se de passagem) de gerar um leito em uma UTI que já está lotada, nem de pagar a caríssima diária de uma UTI particular para um paciente sem condições ou plano de saúde, por mais injusto que isso possa parecer. (eu escrevi mesmo isso??)
Eu, que vejo a rotina médica de perto e por trás do que a mídia costuma mostrar, luto para que o foco seja mantido onde está o erro: nas administrações, nas burocracias. O médico está lá na ponta, e não pode fazer milagres. Mas é claro que não há o interesse em jogar os holofotes por sobre aqueles que tem status e poder, não é mesmo?
Enquanto isso, vamos vendo a grande imprensa criticando médicos e enfermeiros por entrarem em greve, quando na maioria das vezes é tão somente uma tentativa de conseguir as condições mínimas para o correto atendimento da população. Ou será que agora os profissionais da saúde precisam aplicar passes e fazer cirurgias espirituais, prescindindo de salas esterilizadas e equipamentos adequados?
Sim, o sistema público não dá conta de atender a população como deveria, e por isso os hospitais particulares são obrigados por lei a admitir um paciente do SUS. Mas a culpa disso está bem longe daqueles de jaleco que um dia juraram não negligenciar atendimento a um enfermo.