Por PAULO SILBER, jornalista
Beijo, calor, frenesi, gênese.
O que há de errado
em fecundar a vida?
Ah, esse amor não tinha nada
que se multiplicar...
Medo, abandono, ferida, dor.
O ciclo não consumado
é a melhor saída?
Ah, a lei proíbe a solução segura
pelo bem da clandestinidade.
Fiz esse poeminha maroto depois de uma conversa com minha filhota sobre aborto. Quis registrar dessa maneira a expressão da opinião e da orientação que eu passei a ela.
A mãe estava alarmada, pois a Camila afirmara, num dia qualquer, intrépida como devem ser os adolescentes, que faria, sim, um aborto, se fosse necessário.
A mãe se preocupou, eu achei ótimo. Todo mundo tem direito a opinião, por isso não somos macacos. Bem, pelo menos a maioria de nós não é.
Minha tranquilidade deriva do simples fato de que a Camila não fará um aborto – não por condená-lo, mas porque isso jamais será necessário, suponho, por conhecer minha cria.
Ainda que eu me permita pensar na possibilidade de ela descuidar-se, o que é bastante inverossímil, sabe bem quem a conhece, ainda assim, os chiapettas da vida certamente não ganhariam uma cliente confusa e desamparada. Não. Mas eu, que me orgulho da condição de pai, teria o prazer precoce de me tornar avô sem nenhum problema.
Na conversa com a Camila, ao declarar que eu cuidaria do neto como cuido da filha, ela chegou a se assustar:
- Pai! Você é contra o aborto?!
- Não, meu amor! - avisei. - Sou contra a hipocrisia e a insensatez que maltratam esse debate.
Expliquei, tomando a opinião dela como mote, que eu não a via sorrateira, pálida e infeliz na fila de uma “fábrica de anjinhos”. Se por trapaça da sorte, ou desgraça de uma paixão, tivesse minha filhinha uma gravidez indesejada e precoce, em vez de uma clínica clandestina, ela buscaria o pai e a mãe, para que os três, juntos, resolvessem o problema. Não tenho dúvida disso. E eu, como disse, viraria um avô-babão.
- Mas você, filhota - eu a adverti -, não perca isso de vista, é uma pessoa privilegiada. Tem amor, conforto, formação. Tem condições, enfim, para evitar um mal necessário, se necessário for.
Às vezes, infelizmente, o aborto é, sim, necessário.
Morrem no Brasil, segundo estimativas da ONU, cerca de 200 mil mulheres por ano, em abortos clandestinos ou por conta de suas sequelas. O aborto está entre as cinco principais causas de morte de mulheres em idade fértil, no País, de acordo com os dados oficiais.
Não dá para tratar desse assunto apenas pelo filtro moral ou deixá-lo no fogo-brando da discussão ética e religiosa, enquanto as mulheres morrem e matam.
Aborto é uma questão de saúde pública. É preciso tratá-lo assim. Enquanto o Brasil enxergar uma adolescente desorientada, uma mulher violentada, uma infeliz em situação de risco como cúmplices de assassinato por submeter-se aos Herodes de plantão e suas agulhas de crochê, estará premiando e estimulando a clandestinidade.
É preciso proteger a vida, concordo, desde sua gênese – por isso, como expressei lá em cima, eu seria um avô-babão e nunca um cliente dos “açougueiros” da Pedreira.
Mas como proteger mulheres que não têm essa alternativa e se submetem à degradação do aborto clandestino, que as humilha, dilacera, avilta? Considerando-as assassinas? Fingindo que o problema não existe em nome da letra caduca da lei, que trata com soberba o que precisa ser debatido com ponderação?
A lei proíbe a solução segura pelo bem da clandestinidade.
Legalizar o aborto, ou pelo menos debatê-lo com sanidade, com equilíbrio, não é dar salvo-conduto à degradação nem à crueldade. É remédio para um mal que aflige a sociedade. É impor rédea onde não há. Atitude no lugar da potoca. Realidade na fantasia. Verdade contra a falácia.
Não desejo que as meninas e mulheres que são potenciais vítimas do aborto possam fazê-lo sem culpa em cada esquina, como quem compra um Anador. Mas também não gosto da ideia de que 200 mil mulheres morram por ano, e outras tantas se maculem pela leviandade dos clandestinos, alimentando uma engrenagem estupidamente rentável e cretina, pelo simples fato de não encararmos o problema como ele de fato é: gigante, inquietante, alarmante, torturante – e não apenas incômodo à moral e aos bons costumes.
Ao tornar possível o aborto de anencéfalos, o Brasil teve bom senso. Por que não aprofundar esse debate? Por que não dar um passo maior? A tipificação do aborto no Código Penal não é bastante. Não é eficiente. Não resolveu o problema. Ignorar isso é lavar as mãos. É preciso encontrar a saída.
A História já nos deu exemplos de que virar as costas para um problema, por agredir nossos valores morais ou religiosos, pode ser um equívoco. É como fecundar uma erva-daninha.
Demorou mil anos para que o homem se permitisse dissecar um corpo humano, o que era um mal necessário para compreendê-lo. Até então, a Igreja católica condenava ao Inferno quem ousasse sequer pensar numa possibilidade dessas – e durante dez séculos prevaleceu a orientação de Galeno, o médicos dos gladiadores, que supunha, entre outras crenças, que o sangue era produzido pelo fígado!
Não é confortável encarar um problema que nos desconcerta, nem é fácil rever valores sagrados. Mas é preciso se permitir pelo menos isso: o debate.
Tomara que ele venha e, por consequência, se encontre uma solução para que se interrompa a linha de produção dessa tragédia que é a morte de mulheres e de bebês.
É mentira que se façam 200 mil abortos por ano no Brasil.
ResponderExcluirIsso sim, uma posição decente, racional e democrática.
ResponderExcluirFaço minhas as palavras do Paulo Silber.
Mentira aliás, cultivada com o adubo daquela outra, sgundo a qual "o homem é um ser historicamente determinado".
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