quinta-feira, 19 de abril de 2012

Cabeça de peixe


Há muito tempo quero escrever este artigo. Decidido, resolvi fisgá-lo hoje de um cesto de boas ideias que aguardam a sua vez no jornal. Graças a Deus, não tenho problemas com inspiração. Lá, no meu baú eletrônico, tem uma pilha de “artigos” querendo virar papel. O difícil é convencer os mais velhos a continuarem esperando. Eles reclamam prioridade sempre que um novato fura a fila. Eis um artigo feliz.
Vamos conversar um pouco sobre pobreza e felicidade. Talvez seja esta a sua experiência ou de alguém próximo. De qualquer modo, servirá como reflexão de quanto é possível sobrevivermos a provações materiais. Quanto o momento de provação não significa uma perpetuidade de lutas. E, ainda, como podemos ser felizes durante a escassez.
Costumo brincar que o rio Guajará-miri, em Vigia, foi formado com as minhas lágrimas. Tudo que sou tem alguma relação com aquele leito. Minha ascendência  deve tributos de gratidão àquele riozinho. Avós maternos e paternos foram pescadores de suas águas. Quem conseguiu ir um pouco mais além, chegando até a Laura (famoso lugar pesqueiro na região do Salgado), precisou pedir licença ao velho e bondoso rio. Foi o caso de meu pai, o qual, quando conheci, já negociava pescado, indo comprá-lo lá “fora” para depois vendê-lo no mercado municipal.
Minha infância foi vivida às margens do rio Guajarazinho. Dele provinha minha esperança, comida e até o lazer. Sim, até o lazer, pois ocupava longas horas do dia caminhando nas suas margens lamacentas. Procurava alguma coisa: uma moedinha trazida pelas águas ou abandonada pelo descuido. Fichas de refrigerante premiadas. Brinquedo. Peteca. E até caroço de tucumã, que tinha valor de dinheiro em minhas raras brincadeiras. Quando a maré baixava, lá ia eu dividir o terreno lamacento com os sararás, urubus e um monte de perigo. Mas eu não via nada. Aquele rio era para mim uma praia de coisas boas.
Em tempos bons, de algum dinheirinho em casa, o rio era a esperança de uma refeição prazerosa. Não muito depois do almoço, lá pelas duas em diante, estava eu fitando estaticamente o horizonte. Plantado no velho trapiche de madeira, eu olhava para a abertura da baía do Marajó. O que buscava? O mínimo sinal de uma vigilenga, embarcação tão peculiar de minha terra, que recebeu-lhe o nome. Não havia motor. A espera dependia do vento. Depois de um pálido sinal de alguma vela, a atracação podia demorar até duas horas. Às vezes, o jantar chegava logo. Noutras ocasiões, a esperança se renovava por outras figuras distantes. A canoa não trouxera nada. Nem a primeira nem a segunda. Finalmente, às vezes com a noite chegando, lá vinha um barco carregado: douradas com todo o brilho, piramutabas, cações, pescadas... Realmente um tesouro.
Depois que meu avó materno morreu, com ele se foram os peixinhos do curral que diariamente despescava. Agora, era a vez da fome. Um. Dois. Três dias inteiros sem comer. Nada. Nem um cafezinho. Minha avó, pobre viúva sem arrimo, mandava-me ao mercado procurar comida. Era inverno. Durante a noite, o chão do mercado de Vigia ficava assoalhado de piramutabas. Querendo evitar o pior, dezenas de homens corriam contra o tempo, salgando seus cardumes desfalecidos E eu ficava ali, esperando que me dessem algumas cabeças de peixe, que geralmente eram descartadas na hora da salga. Quando conseguia ajuntar algumas delas, corria de felicidade até nossa casinha de taipa. Minha avó já arrumara a panela. Punha sal, chicória e alfavaca. E a gente comia o cardápio dos anjos. Não me lembro de tempo mais feliz.

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RUI RAIOL é escritor
www.ruiraiol.com.br

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