segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Nova diáspora irlandesa


Não sei se podemos denominar barco, chata, catamarã ou navio, tamanha a confusão que a Irlanda e outros países, como Portugal, Espanha e Grécia da União Europeia se encontram. Quiçá, digamos assim, preferir chamar a embarcação desses países de cábrea, que por definição é uma embarcação flutuante provida de guincho... Talvez eles usem, em vão, para resgatar os que sucumbirem em águas abissais.
De fato, as situações das economias fragilizadas da periferia européia são diferentes. Mas os analistas de mercado estão pouco atentos às desigualdades entre os processos que causaram as respectivas dificuldades, como também pouco se importavam com as diferenças entre Indonésia e Coréia do Sul, Brasil e Rússia, ou México e Argentina: querem apenas saber quanto à volatilidade pode lhes render ou custar a curto prazo. E a receita prescrita a todo paciente, seja qual for seu prontuário ou sua doença, é a mesma, sangria. Também conhecida como ajuste fiscal e "austeridade".
Não que sangrias os sosseguem: os fazem ansiar por mais, como na história do homem da Transilvânia. A Irlanda, severamente atingida pela crise financeira já em 2008, quando foi obrigada a resgatar os bancos superdimensionados por uma década de euro e desregulamentação que os incentivou a jogar com a crise imobiliária, começou logo a cortar gastos públicos, mas nem por isso recebeu compaixão. Os juros cobrados para renovação de sua dívida, semelhantes aos da Espanha em outubro de 2008, passaram a praticamente igualar Portugal desde abril de 2010 e tornaram-se distintamente piores a partir de meados de outubro. Como Portugal, a Irlanda pode perder soberania econômica e sofrer uma versão moderna da Grande Fome causada por um fungo nas batatas nos anos 1840. Além dos problemas internos, a Irlanda sofreu com a crise generalizada que assolou a Europa. O fungo Phytophora infestans arrasou as colheitas de batata, enquanto as intempéries climáticas destruíram as de cereais. O dinheiro líquido tornou-se escasso, provocando fabulosas falências. A recessão e o desemprego atingiram ainda as economias inglesa, francesa e alemã.
Na Irlanda, a sobrevivência estava intimamente ligada à batata. Os irlandeses viviam de batatas, como os chineses, de arroz. No segundo semestre de 1845, em poucos dias o míldio, um fungo do bolor, destruiu três quartos da produção de tubérculos. Em 1846 e 1847, a perda foi total.
Desesperada, em pouco tempo a população não tinha outra alternativa a não ser emigrar ou morrer. Um milhão e meio de irlandeses cansados, famintos e doentes precipitaram-se rumo aos Estados Unidos e Grã-Bretanha, suscitando uma animosidade reforçada pela repulsa, em vez de compaixão. Foram estes celtas que ajudaram a fazer a riqueza da América. Alguns navios se tornaram verdadeiras sepulturas, que nunca chegaram ao porto de destino. "Se fosse possível fincar cruzes sobre a água, a rota dos imigrantes pelo Atlântico seria um imenso cemitério", afirmou um comissário da imigração.
Agora, o ajuste fiscal em 2010 foi de 3 bilhões de euros e deve chegar a 6 bilhões em 2011, perto de 5% do PIB. O desemprego poderá chegar a 7%. Duzentos mil irlandeses (5% da população) farão uma grande diáspora até 2015. No século 19, a Irlanda foi vítima da monocultura da batata, cujo súbito colapso foi provocado por um fungo. No século 21, é vitima da monocultura do setor financeiro e da praga das análises irresponsáveis.

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SERGIO BARRA é médico e professor
sergiobarra9@gmail.com

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