quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Um voto de amor ao próximo


Se concordamos com o sábio que a democracia é o melhor dentre os piores regimes, precisamos reconhecer que ainda estamos no final da fila. O processo democrático brasileiro contém vícios terríveis, que, persistindo, tendem a nos afastar cada vez mais do ideário de um governo do povo e para o povo. A Nação vive um antagonismo entre os privilégios da classe política e o mundo real de milhões de pessoas à margem do Estado.
Não obstante sua riqueza natural, o Brasil é um país de 12 milhões de famintos, segundo recente divulgação da ONU. Temos muito peixe, carnes e vegetais. Exportamos comida. Todavia, essa população gigantesca passa fome. Se almoça, não janta. Se janta, come mal, enganando o estômago com alimentos embutidos de última qualidade. A desnutrição só não é maior por causa do costume do feijão com arroz. Isso quando dá.
Subnutrida, essa parcela da população é a que mais adoece. E quando a enfermidade chega, o drama piora: o único recurso é procurar o SUS. Porém, não há leitos, médicos nem remédios. Então nosso querido povo brasileiro agoniza ali mesmo nos corredores. Quem não teve direito de viver com dignidade, morre de igual modo. Morre publicamente, sem privacidade. Morre no meio de tantos outros que gemem ou se esforçam por um atendimento.
Somos o país dos homicídios. Cinquenta mil todos os anos, a maioria de jovens. Isso é tão forte que chega a mexer com a equação entre o número de homens e mulheres no Brasil. Quem está preocupado com isso? Quem tem coragem de denunciar esse massacre e fazer alguma coisa?
O Brasil morre também todo dia no asfalto de seu trânsito caótico. As cidades estão sufocadas, sem aplicação de um plano diretor. Décadas decorrem para que vejamos pálidas obras, nascidas obsoletas, monumentos eleitorais. É preciso várias gerações para que se asfaltem estradas. Quase todas as cidades têm sua "rodovia da morte". Quem está disposto a conversar sobre isso?
Boa parte da infância brasileira está nas ruas, sem pai nem mãe, sem escola. São meninos de morte anunciada. As cidades se converteram num ajuntamento desses garotos e garotas viciados. Estão a cada esquina, sujos, drogando-se diante de nossos olhos. O que estamos fazendo? Em que pensamos nestas eleições?
Eleições. Todo tempo é a mesma coisa. Parece Copa do Mundo: multidões empolgadas com o privilégio de poucos. Muito barulho. Interesse próprio. Dia seguinte, a folha do calendário muda. Muda a sorte dos eleitos e daqueles que têm vínculo direto com eles. Mas ao povo resta a realidade do subemprego, da falta de moradia e do salário de fome. Quem está pensando nisto agora? A quem interessa estes valores?
Vivemos uma democracia perneta, onde ditadores se perpetuam em nome da liberdade. Cabe uma reeleição consecutiva para alguns cargos. Mas, se tiver de deixar a cadeira, o governante põe outro para guardar o assento. Na próxima, estará de volta. E tudo isto sem se ausentar do poder, gastando o dinheiro público. Não podemos chamar de democrático um país cujo chefe do Executivo pode fazer comícios, usando de todo o poder da máquina pública. É meia-democracia, no máximo. É erguer muros com discursos protecionistas. Leninismo posto ao chão.
No processo eleitoral, o mais absurdo provém do STF. Julgando o recurso do ex-governador Joaquim Roriz, o tribunal empatou em cinco a cinco. E, perante toda uma sociedade alvoroçada, a Corte ameaça não resolver a questão. Se há empate, dizem alguns, então a Lei da Ficha Limpa é válida. A balança já estaria equilibrada. Pode? Isso não é "dizer o direito", tarefa basilar do Judiciário. É esconder-se sob a toga enegrecida.
Enquanto assim prosseguimos, milhões seguem sua rotina de miséria. Sem passado, presente e futuro. Não entendem talvez um pouco do que temos conversado aqui. Mas votarão. Como farão isso? Talvez façam por uma cesta-básica, algumas notas de real ou simplesmente promessas. Vendam assim tão barato o voto que mais tarde valerá rios de ouro no cobiçado mercado negro político. Vendam assim a esperança de seus filhos e a sorte de uma nação que tem tudo para dar certo.
Quanto a mim, vou votar com minha consciência. Vou votar para outros que ainda passam fome e vivem sem teto. Não vou esquecer meus dias de jejum forçado. Nem o salário que ganhei durante dez anos e o modo precário como criei meu primeiro filho. Não posso esquecer isso, agora quando ando de carro e tenho um bom emprego. Vou votar obedecendo ao mandamento de Jesus: votarei para o meu próximo, como votaria para mim mesmo, lembrando dos dias que juntava cabeça de peixe no mercado de Vigia para matar minha fome de menino. Não quero mudar.

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RUI RAIOL é escritor (www.ruiraiol.com.br)

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