quarta-feira, 25 de agosto de 2010

O presidente e Sakineh

No blog Na Rede, da jornalista Ana Diniz

Bem, agora o presidente do Irã chamou Lula de “emotivo”, para não dizer coisa pior... porque o contexto da declaração é de coisa pior, mesmo.
Eu não consigo pensar em diálogo com o presidente do Irã.
Não depois do que o fanatismo dessas pessoas fez com as mulheres iranianas.
Não depois de olhar a história de sua ascensão ao poder.
Os fundamentalistas não depuseram o Xá. Eles não participaram da organização da República.
Eles cobriram o Irã de uma camada de obscurantismo.
Azar Nafisi conta o que eles fizeram com as mulheres que resistiram às absurdas leis que reduziram a idade nupcial das mulheres para nove anos – é, nove anos de idade e uma iraniana pode ser entregue para casar -, deram aos maridos o direito de espancar, proibir, trancar e amordaçar – mordaças de couro, às vezes máscaras com abertura apenas para respirar – e, às milícias encarregadas dos costumes, o chicoteamento nas ruas.
As mulheres reagiram e se manifestaram, lado a lado com milhares de homens que não aceitaram o retrocesso. Elas iam para as passeatas; eram presas e chicoteadas. Centenas delas foram mortas – e, sob a alegação de que, se fossem virgens, iriam para o céu, eram entregues em “casamento” aos guardas das prisões, que as estupravam antes de matá-las. Mulheres consideradas adúlteras – muitas vezes por uma simples acusação do marido – eram metidas num saco e apedrejadas até morrer.
Lula se disse chocado com a condenação de Sakineh (na foto) – considerada adúltera e condenada a morrer apedrejada – neste julho de 2010.
Antes tarde do que nunca, mas o governo dos aiatolás dura desde 1980, numa trilha sanguinária que inclui milhares de mulheres submetidas a crueldade e morte; soldados crianças, mandados deliberadamente para a morte explodindo minas terrestres na guerra com o Iraque; tortura e morte de homossexuais; mutilação de pessoas; prisão, confisco de bens e dos filhos, e morte para bahá’is, budistas e demais seguidores de religiões orientais.
A lista de atrocidades é longa, e a quantidade de vítimas sobe a centenas de milhares.
A distensão, verificada na última década, não mudou as leis. Apenas diminiu sua aplicação.
Lula faz de conta que não sabe de tudo isso.
Mas não saber é coisa grave para um presidente.
Lula diz que aceita o Irã porque é preciso dialogar para superar diferenças.
Mas, no caso, a questão não é de diálogo. É de justiça.
A violência indiscriminada contra as mulheres no Irã não é um simples assunto interno do Irã. O estupro legal de uma menina de nove anos não pode ser admitido. Dialogar com pessoas que defendem isso é impossível, porque a conversa já está comprometida desde o início.
Que o Irã queira chamar os Estados Unidos de Grande Satã – é problema dele. Que queira desafiar os controles do enriquecimento nuclear – também é problema dele. Mas não se pode admitir a violência legalizada a que as mulheres do Irã estão submetidas. E a questão não é islâmica – é de direitos humanos. E a grande maioria dos países islâmicos há muito abandonou essas práticas.
Nós, brasileiros, nos orgulhamos de nossa tolerância. Mas não podemos permitir que alguém se aproveite dessa tolerância para ser intolerante.
Também não podemos aceitar que, em nome das exportações, se reconheça como parceiro um regime atolado de sangue. Seria como vender princípios junto com o café.
Traduzindo: o pragmatismo tem limite. E este limite não é emotivo.

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