quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Mulheres sem direito à vida


Não obstante toda a conquista socioeconômica, a mulher continua morrendo diariamente pelas mãos de seus parceiros. Eliza Samúdio e Mércia Nakashima são provavelmente exemplos recentes de como a fórmula dos sexos continua desigual no mundo. Seja no Brasil verde-amarelo ou no criticado Irã. Se neste a morte vem por apedrejamento após a prática de um crime desqualificado para o mundo ocidental, em nosso país a execução sumária precede a qualquer investigação.
Não precisamos de censo para constatar que o número de homicídios praticados por mulheres contra seus parceiros é bem menor. Quase mesmo desprezível perante a situação inversa. E mesmo quando o crime existe é mais uma defesa. Se não é verdade, cite-me agora o último caso da morte de um homem nessas circunstâncias.
Por que homens continuam matando por motivos de relacionamento? Porque esse lado da sociedade pouco evoluiu. Enquanto a mulher conquistou espaços importantes na pirâmide social, a visão masculina quase nada mudou quando o assunto é sexo. Não houve grandes avanços nesta área. Na cabeça de muito homem, mulher não tem o direito de escolher o seu companheiro. Seja antes ou depois do relacionamento com ele.
Há mulheres graduadas que vivem um cativeiro. Na aparência têm tudo: status, carro importado e vida de madame. Porém, no recôndito do quarto e do mesmo carro vestem diariamente a burca da aniquilação. Comem pratos finos regados de lágrimas. Escondem-se. Dissimulam uma vida escravizada pelos ciúmes doentios de seus parceiros. São violentadas diariamente com palavras de baixo calão. Tratadas como se fossem esterco. O que dizer então daquelas menos favorecidas? Muitas são escravas da casa onde moram. Existem para lavar, passar e cozinhar. De certo modo, foram compradas até a morte.
Por falar em morte, ainda há quem leve à risca o preceito da indissolubilidade do casamento. Foi assim que encontrei uma senhora em certa igreja. Ela me procurou para pedir alguns conselhos. Tinha um casamento arranjado pelos filhos de um viúvo. Logo nas núpcias - se posso aplicar este termo - descobriu que o homem não era de nada. E para complicar, tornou-se alcoólatra e vivia ameaçando de matá-la. Quando veio conversar comigo, era uma senhora de quase 50 anos de idade, com sequelas de um atropelamento. Estava em pânico.
- O que eu faço? - ela me perguntou desesperada.
E minha resposta foi:
- Separe-se imediatamente.
- Mas na Bíblia não está escrito que o casamento deve durar até que a morte nos separe? - ela rebateu, duvidosa.
E eu disse:
- Sim, está, e pelo que a senhora acabou de me dizer, essa morte será a sua. E então, vai esperar?
Graças a Deus, ela não esperou e foi tudo resolvido. Orientei para que ela devolvesse a bomba para os filhos cuidarem. E ela fez isso. Também vendeu a casa, deu a parte que cabia ao homem. Depois mudou para bem longe, lugar incerto e não sabido. Até hoje está viva. Quietinha no seu canto.
Olhando estritamente crimes contra a mulher, tento identificar por que da ocorrência tanto no Irã quanto no Brasil. E concluo que no caso de Sakineh, condenada à morte por um possível adultério, o pano de fundo é a religião. Nos estados teocráticos, a norma é acentuadamente moral. Lá, a mulher vive coberta. Deve seguir rigidamente os preceitos de uma legislação carregada de discriminação. Mas, apesar de toda crítica, essas condutas delituosas estão codificadas.
Do lado ocidental, não. Aqui, o Estado é laico. Direito e religião caminham bem separados. Diferentemente, há normas protetoras à figura da mulher e algum aparato policial a seu dispor. Aqui a mulher tem liberdade para se vestir. Qual então a razão desse massacre? Acredito que seja uma questão de mentalidade masculina.
Para mudar essa realidade de violência moral e física contra a mulher, é necessário investir na educação. O currículo do ensino, em todos os níveis, deveria incluir noções de cidadania, que mostrassem nossos direitos e deveres. A sala de aula deve ser um espaço para pensar e repensar sobre convivência social, principalmente na vida privada, pois praticamente tudo o que somos deriva desse espaço.
Não basta inscrever direitos para a mulher brasileira. É preciso convencer o sexo oposto acerca do necessário respeito. Pois, enquanto esses direitos vão sendo aperfeiçoados no papel, o homem permanece quase intocável em sua cultura machista. Continua matando suas parceiras. Torturando e matando igual aos iranianos.

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RUI RAIOL é escritor (www.ruiraiol.com.br)

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