ANA DINIZ
O biscoito é delicado e simples: água, manteiga, farinha de trigo, açúcar, uma calda de chocolate coberta com açúcar cristal. Deve derreter na boca, mas ser denso o suficiente para não quebrar no manuseio, e manter o gosto de trigo assado.
Por trás dele, negros e brancos.
Primeira versão da história: na Cidade Velha havia duas padarias. Uma de um negro, outra de um português. Rivais, um vendia um biscoito branco, outro um biscoito preto, com calda de chocolate. O filho de um casou com a filha do outro, e o biscoito também foi casado: meio escuro, meio claro, branco e preto, Monteiro e Lopes, Monteiro Lopes ficou o biscoito. Em duas metades, a branca e a preta.
Segunda versão da história: era um juiz, e negro. Chamava-se Agnano Monteiro Lopes, chegou a desembargador e presidente do Tribunal de Justiça do Pará. Dizia-se que era a bondade em pessoa; que era íntegro e honrado. Uma doceira beneficiou-se dessa bondade, e resolveu colocar calda de chocolate sobre o biscoito branco que fazia habitualmente. Um biscoito todo escuro, com o interior branco. Para homenagear o desembargador Monteiro Lopes, um preto de alma branca.
(Nestes tempos de muito cuidado com racismo e preconceitos, falar-se de negro de alma branca é perigoso. Pergunto-me se é igualmente perigoso falar-se de brancos com almas negras. Conheço vários. Aliás, seria preciso revisar Oscar Wilde e o negror das almas danadas de Dante...)
Monteiro Lopes não é um preto com alma de branco, é um negro de alma branca. Trigo e chocolate, os sabores se confundem através do açúcar. É um biscoito delicado, tem que ter o ponto certo de enrolar e o ponto certo de assar. Se passar do ponto desmancha, quebra, fica seco demais, o trigo queimado amarga. Se não chegar no ponto, não enrola direito, absorve calda demais, fica molengo. Tipo da coisa difícil de conseguir. Difícil porque é simples, não há creme de leite para disfarçar, nem confeitinhos para tornar mais atraente. Difícil porque é direto: se a massa for boa, bem feita, bem trabalhada, o preto e o branco estarão no delicado equilíbrio que caracteriza as boas coisas da vida.
Eu gosto da história do juiz, mais que a primeira versão da história. Porque é uma homenagem perene: eu fiz uma busca na internet, e da memória do desembargador Monteiro Lopes só encontrei um auditório com seu nome no Tribunal de Justiça. Mas a homenagem tem o sabor do bem na boca de todos. A bondade de um juiz com gosto de açúcar, trigo e chocolate. Em preto no branco.
Por outro lado, é romântico pensar-se em Romeu e Julieta transformados num doce de duas cores, claro e escuro, o fim da rixa dos padeiros. Mas não sei porque, não faço fé nessa história: parece-me arrumadinha demais – ideologicamente, é claro – para ser verdadeira. No entanto, conheço muitas histórias de amor desafiante com um protagonista branco e o outro negro para descrer da história da Cidade Velha. Enfim, ela também remete para o equilíbrio: boa massa, bom trabalho, calda leve – e um biscoito perfeitamente paraense, um doce que é também uma fábula que chega ao paladar.
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ANA DINIZ é jornalista.
Artigo extraído do blog dela, o Na Rede.
Por trás dele, negros e brancos.
Primeira versão da história: na Cidade Velha havia duas padarias. Uma de um negro, outra de um português. Rivais, um vendia um biscoito branco, outro um biscoito preto, com calda de chocolate. O filho de um casou com a filha do outro, e o biscoito também foi casado: meio escuro, meio claro, branco e preto, Monteiro e Lopes, Monteiro Lopes ficou o biscoito. Em duas metades, a branca e a preta.
Segunda versão da história: era um juiz, e negro. Chamava-se Agnano Monteiro Lopes, chegou a desembargador e presidente do Tribunal de Justiça do Pará. Dizia-se que era a bondade em pessoa; que era íntegro e honrado. Uma doceira beneficiou-se dessa bondade, e resolveu colocar calda de chocolate sobre o biscoito branco que fazia habitualmente. Um biscoito todo escuro, com o interior branco. Para homenagear o desembargador Monteiro Lopes, um preto de alma branca.
(Nestes tempos de muito cuidado com racismo e preconceitos, falar-se de negro de alma branca é perigoso. Pergunto-me se é igualmente perigoso falar-se de brancos com almas negras. Conheço vários. Aliás, seria preciso revisar Oscar Wilde e o negror das almas danadas de Dante...)
Monteiro Lopes não é um preto com alma de branco, é um negro de alma branca. Trigo e chocolate, os sabores se confundem através do açúcar. É um biscoito delicado, tem que ter o ponto certo de enrolar e o ponto certo de assar. Se passar do ponto desmancha, quebra, fica seco demais, o trigo queimado amarga. Se não chegar no ponto, não enrola direito, absorve calda demais, fica molengo. Tipo da coisa difícil de conseguir. Difícil porque é simples, não há creme de leite para disfarçar, nem confeitinhos para tornar mais atraente. Difícil porque é direto: se a massa for boa, bem feita, bem trabalhada, o preto e o branco estarão no delicado equilíbrio que caracteriza as boas coisas da vida.
Eu gosto da história do juiz, mais que a primeira versão da história. Porque é uma homenagem perene: eu fiz uma busca na internet, e da memória do desembargador Monteiro Lopes só encontrei um auditório com seu nome no Tribunal de Justiça. Mas a homenagem tem o sabor do bem na boca de todos. A bondade de um juiz com gosto de açúcar, trigo e chocolate. Em preto no branco.
Por outro lado, é romântico pensar-se em Romeu e Julieta transformados num doce de duas cores, claro e escuro, o fim da rixa dos padeiros. Mas não sei porque, não faço fé nessa história: parece-me arrumadinha demais – ideologicamente, é claro – para ser verdadeira. No entanto, conheço muitas histórias de amor desafiante com um protagonista branco e o outro negro para descrer da história da Cidade Velha. Enfim, ela também remete para o equilíbrio: boa massa, bom trabalho, calda leve – e um biscoito perfeitamente paraense, um doce que é também uma fábula que chega ao paladar.
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ANA DINIZ é jornalista.
Artigo extraído do blog dela, o Na Rede.
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