quinta-feira, 6 de maio de 2010

Entre a vida e a morte


Eis uma frase muito séria. Geralmente, é utilizada para descrever quadros extremos de sobrevivência. Situações-limite. Mas, na verdade, todos estamos entre a vida e a morte. Ainda bem! E estamos assim porque viver é exatamente isso: percorrer uma reta cujo marco inicial é a fecundação e cuja linha de chegada é o óbito. Logo, todo intervalo entre esses pontos é a vida. É o tempo.
Sabemos que tempo e espaço são as principais dimensões para nós, mortais. E que a relação entre essas grandezas é algo indissociáveis. Cara e coroa. Mas vamos nos deter sobre o tempo. Para nós, ele sempre escoa, independentemente de nos movermos ou não no espaço. É o elemento que mais nos incomoda.
Bernardino Santos escreveu estes dias uma frase muito interessante em sua coluna deste jornal: "Não tenho idade. Tenho vida.", afirmou com sabedoria. De fato, ter idade significa contar o tempo. Ter vida é reconhecer que esse milagre perpassa todo critério de mensuração, conforme o modelo gregoriano de contar os dias.
Podemos dividir a vida de muitas formas: o tempo em que éramos crianças ou jovens. Tempo de férias e de trabalho. De estudar e de passear. E assim por diante, conforme a sapiência do Eclesiastes. Todavia, existe uma forma mais abrangente, quando olhamos a vida em sua inteireza: vivemos entre a vida e a morte.
Você pode contar seu tempo desta forma: o tempo que tenho está situado entre o dia em que nasci e aquele quando partirei. Tudo mais é intervalo. Nesse momento, você comecará a se desligar mais do relógio.
Alguém dirá: "Sim, e como fica minha jornada de trabalho, prazos processuais na justiça, vencimento de contas, hora de buscar as crianças na escola...? Vou virar um irresponsável?" De jeito nenhum.
Estamos falando aqui de um estado interior. Claro: o mundo continuará exigindo que você preste conte de cada segundo. E você fará isso. Porém, estará programado para pensar a vida como uma grande jornada, única jornada. E deixará de enxergar as atividades do dia a dia como se cada uma delas fosse sua própria vida. Não são. Elas são minúsculos traços na grande reta. O problema é que às vezes esses tracinhos se sentem tão importantes que reclamam dedicação exclusiva.
Quer um exemplo concreto? Dirija um carro em Belém. Você encontrará milhares de pessoas achando que cada detalhe é a própria vida. Desesperados. Ora, no máximo, motoristas assim poderão apressar a morte. Atrasar nunca. Nesse trânsito, não!
Outro exemplo: fila de banco. Fila de estressados. Jovens agoniados para correr ao trabalho. Velhinhos murmurando a cada espiada no velho relógio de pulso. Meu Deus! Os bancos precisavam dispor de um serviço de psicologia. Igualmente os postos do INSS, caixas de supermercado, pontos de ônibus etc.
Olhamos para pessoas assim e perguntamos: aonde esse camarada vai parar? Será que ele acrescentou um dia à sua vida com todo esse stress? E concluímos que no dia da morte, cada um vai estar quieto: sem filas, sem contas, sem pressa. Então, por que se agoniar tanto com os intervalos da vida? Se estamos na fila é porque a viagem continua. E tem gente que pagaria fortunas para ressuscitar e viver inteiramente numa fila de banco. Seria o mais sorridente de todos. Ou não.
Não temos idade. Temos a vida, tomo emprestado agora. Não temos horários, temos uma viagem em curso, que pode durar setenta, 80 ou 100 anos. Acima disso, só para Niemeyer. Eis uma boa forma de contarmos o tempo, inclusive para aniversariantes de hoje. Relaxe!

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Rui Raiol é pastor e escritor (www.ruiraiol.com.br)

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