sábado, 30 de janeiro de 2010

A queda da torre

RUI RAIOL

Vez ou outra, somos surpreendidos por uma palavra infeliz, proferida por alguém que deveria ter outro tipo de voz. Aconteceu agora, quando da tragédia que destruiu o Haiti. Depois de fazer apologia da morte de Hugo Chávez há alguns meses, Pat Robertson, conhecido pastor americano, interpretou a catástrofe caribenha como castigo divino. Segundo o religioso, antepassados das vítimas teriam feito uma aliança com o Diabo, prometendo-lhe servir em troca da libertação do domínio francês.
Bem, antes de desenvolver o tema, permita-me asseverar o que todos sabemos: o Haiti está envolvido em cultos fetichistas. Relatos de respeitados evangelistas apontam o território haitiano como um lugar espiritualmente difícil. Alguns confessam que, desde o desembarque, arrepiam-se e sentem uma forte opressão contra a missão a desenvolver. E mais: jornalistas comuns também costumam ficar chocados com os rituais religiosos no Haiti. Especialistas em mídias sobre religiões mundiais encontram dificuldade para falar da religiosidade haitiana.
Ainda assim, dentro de uma visão sociológica, vivemos o fenômeno do etnocentrismo, quando culturas divergentes costumam ver-se como estranhas e até repudiam-se. Certamente, não é nesse terreno que encontraremos justificativa para o abalo sísmico. O fundamentalismo religioso tem sido responsável por muitas desgraças. Em muitos círculos tenta-se justificar erros em nome de Deus. Numa teologia livre, pode-se fazer "guerra santa" para exorcizar o capeta ou fazer parceria com ele. E muita gente boa, com ares de santidade, trabalha para o diabo com a Bíblia aberta sobre a mesa do gabinete.
Nos evangelhos, Jesus foi muito desafiado com esta questão. Para prová-lo, seus inimigos queriam saber quem havia pecado para que alguém nascesse cego.

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“O fundamentalismo religioso tem sido responsável por muitas desgraças. Em muitos círculos tenta-se justificar erros em nome de Deus.”
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E foi assim que um grupo chegou para questioná-lo sobre a morte de alguns galileus, por certo, peregrinos, cujo sangue Pilatos misturara a seus sacrifícios. Sem titubear, o Mestre respondeu que as vítimas não eram mais pecadoras que toda a Galileia. E referiu-se também à queda da torre de Siloé, que matou 18 pessoas em Jerusalém. Afirmou três verdades: 1) não há necessariamente correlação entre pecados e tragédias; 2) todos os homens estão sujeitos a desastres, independente de sua fé em Deus; 3)haverá um julgamento final sobre todos, que poderá ser pior que desastres classificados como ações divinas pontuais.
No caso do Haiti, sabemos que o país está bem perto do Círculo de Fogo do Pacífico. Essa região é caracterizada por uma elevada movimentação de placas tectônicas. Portanto, geologicamente, esses povos enfrentam problemas com vulcões, terremotos e maremotos. Não é necessário qualquer pacto com o diabo para a terra tremer ali.
Jesus classificou como acidental a morte dos galileus e o desabamento da torre de Siloé. Nem Deus nem o diabo foram inclusos. Da mesma forma, acredito, haveria isenção de juízo de valor sobre a queda das Torres Gêmeas em Nova Iorque. Do ponto de vista das vítimas, nada de fundamentalismo, nada de castigo. Há um desastre. Há vítimas.
O que se espera de quem se diz filho de Deus é o amor. Essa é a avenida central do Evangelho, por onde devemos andar diariamente. Amar, mesmo os que se proclamem inimigos. Se os haitianos do passado - o que a inteligência divina deve considerar - celebraram pactos macabros, então o centro do amor de Deus deslocou-se para o Caribe. Sobretudo agora, quanto há milhares e milhares de mortos e ruína por toda parte. Jesus viajaria para lá.

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RUI RAIOL é pastor e escritor (www.ruiraiol.com.br)

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