domingo, 2 de novembro de 2008

É casado? Tem filhos? Você viu notícia por aí?

Na FOLHA DE S.PAULO:

FERNANDO DE BARROS E SILVA
EDITOR DE BRASIL

Carlos Eduardo Lins da Silva não gostou do trabalho da Folha no segundo turno das eleições municipais. Como indicava um dos títulos de sua coluna no domingo passado -"Tudo que é sólido se desmancha no fim"-, o ombudsman considerou que a cobertura descarrilou, comprometendo a isenção do jornal. É uma lástima, disse ele, que o esforço crítico e a ênfase nas propostas dos candidatos, que haviam prevalecido no primeiro turno, tenham se dissipado. No cômputo final, concluiu, Kassab foi favorecido.
Durante o primeiro turno, mais de uma vez o ombudsman escreveu que a Folha estava sendo mais crítica em relação a Kassab do que aos demais. "Em parte, é natural, já que ele está no exercício do poder. Mas tem ocorrido exageros injustificáveis", disse ele em 17 de agosto.
É verdade que a Folha dedicou mais espaço a Alckmin e Kassab no primeiro turno, inclusive nas reportagens que resultaram negativas para cada candidato (veja os números do levantamento feito pela editoria no quadro acima).
Tal distorção, que alguém poderia considerar benéfica para Marta Suplicy, se explica por um dado da realidade: desde cedo ficou nítido que os rivais disputavam uma vaga no segundo turno, onde o PT já estava garantido -logo, a notícia se concentrava na disputa travada entre democratas e tucanos, ou serristas e alckmistas.
É claro que a cobertura não deve ficar refém da dinâmica das campanhas ou da evolução das pesquisas -nem foi o caso. Mas também não pode ignorá-las, sob o risco de ser rigorosamente equilibrada, mas, antes disso, autista, centrada em si, não no mundo externo.
A isenção jornalística e o projeto editorial da Folha devem ser exercidos no corpo-a-corpo com os fatos, não à sua custa; no atrito com a realidade, nossa matéria-prima, não num espaço vazio e idealizado, como se a vida bruta viesse se intrometer no resultado que o jornal pretendeu para o jogo antes de a partida começar.
Acredito que o cerne da nossa divergência resida no entendimento do que foi a principal ocorrência, o grande fato jornalístico da campanha paulistana no segundo turno.
Recapitulo: passados apenas três dias do primeiro turno, o Datafolha registrou uma vantagem de 17 pontos a favor de Kassab. Três semanas depois, o TSE proclamava sua vitória, 20 pontos à frente de Marta. Em termos de oscilação do eleitorado, quase nada aconteceu.
Nesse intervalo, a Folha fez sabatinas com os candidatos, realizou debates e entrevistas, criou seções fixas ("Eu voto em..." e "Lupa na campanha"), voltou a confrontar propostas de governo (muito parecidas) e procurou desconstruir promessas feitas na TV (como no primeiro turno). Tudo isso acabou ofuscado pelo efeito repetitivo e pela previsibilidade do desfecho, mas sobretudo pela campanha que o PT levou ao ar na estréia do horário eleitoral:
"É casado? Tem filhos?"
Quando decidiu explorar a vida privada do adversário na TV -acreditando que pudesse despertar o preconceito de parcela da sociedade a partir de uma insinuação velada, mas óbvia, de homossexualismo-, Marta rompeu uma barreira e fez uma aposta de risco -ou baixa, a depender do ângulo.
Controvertida sob todos os aspectos, a propaganda ganhava contornos ainda mais polêmicos à luz da trajetória política da candidata, ligada à defesa das minorias e dos gays, em particular. Muita gente ficou escandalizada, inclusive (sobretudo?) simpatizantes do PT. Era preciso algo mais?
Num certo sentido, a discussão sobre os métodos válidos e os limites éticos de uma campanha eleitoral, que o episódio trouxe à tona, ultrapassou o âmbito da disputa local para ganhar interesse mais amplo.
Longe de promover um linchamento da candidata, o jornal foi o primeiro a ouvir a própria Marta, além de entrevistar com exclusividade seu marqueteiro e o chefe-de-gabinete de Lula, entre outros -petistas e opositores. Houve, em resumo, um empenho para fazer a lição de casa diante de uma notícia que gritava à nossa volta.
O ombudsman preferiria uma cobertura bem mais discreta e menos extensiva do episódio, para ele quase uma futrica. É uma opinião para se respeitar. Mas sobretudo para não confundir com o uso que dela fazem alguns petistas quando apontam o dedo para a "mídia preconceituosa", acusando-a de prejudicar Marta. Além de ser moralmente indigente, o argumento agride a inteligência alheia. Já não foi assim em 2006, com os aloprados?

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