domingo, 1 de junho de 2008

“A noite do dia 14 de maio ainda não terminou”

Abaixo, a matéria principal do jornal "O Dia", edição deste domingo, que relata em detalhes as agressões de que foram vítimas jornalistas que faziam reportagem especial numa favela do Rio.

 

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Rio - A noite do dia 14 de maio não terminou para a equipe de O DIA que fazia reportagem especial na Favela do Batan, Zona Oeste. Repórter e fotógrafo completavam 14 dias vivendo no local e a ansiedade natural do grupo – que sabia estar em território inimigo e tomava todos os cuidados para não chamar a atenção – deu lugar a um desconfiado otimismo, depois que moradores da favela convidaram parte da equipe para uma cerveja no Largo do Chuveirão. Fotógrafo e motorista, que havia se unido ao grupo, aceitaram o convite. A repórter ficou em casa, para não desobedecer à velada ordem da favela, que lança olhares de reprovação a mulheres desfrutadoras da noite.

A lei local, paralela como toda estrutura de comércio e serviços na região, também definiu fim violento para o trabalho da equipe do jornal na comunidade. No Largo do Chuveirão, local de maior concentração da favela, uma emboscada à vista. Fotógrafo e motorista, que imaginavam estar apenas indo para uma festa, acabaram conhecendo o inferno: foram rendidos por 10 homens armados, usando toucas ninja para cobrir o rosto. Mas outras coisas os bandidos não faziam questão de esconder: um dos carros usados no seqüestro foi o Polo vermelho placa KPB 4592, veículo de "policiamento" da milícia local. Sim, eram policiais e faziam questão de ressaltar isso.

Os bandidos que usam farda nas horas vagas algemaram os dois integrantes da equipe e os mostraram a cerca de 30 moradores, que, assustados, saíram de suas casas para ver quem seriam as próximas vítimas dos neoditadores. Os criminosos tentaram obrigar a população a linchar a equipe, não queriam sujar as mãos de sangue. Mas não foram atendidos e acabaram seguindo com a dupla e um morador que os acompanhava até a casa que havia sido alugada pela equipe, na Rua Alfredo Henrique, uma das principais da favela.

O relógio havia acabado de passar das 21h quando a campanhia das casas semigeminadas do endereço tocou. Do lado de dentro, a repórter imaginou que eram seus companheiros. Do lado de fora, sete homens armados e com toucas ninja a esperavam, prontos para novo ato de covardia. Ao abrir a porta, a jornalista foi rendida com arma na cabeça. Os bandidos, mais uma vez, não esconderam sua função original e deram voz de prisão, como se fossem policiais exercendo a lei. "Você é do Jornal O DIA e está presa por falsidade ideológica", disse o mascarado conhecido como Zero Um, sujeito franzino que lidera a milícia local.

Rendida, a repórter sentou com a cara na parede, enquanto dois homens começavam a sessão de tortura que só acabaria dali a mais de sete horas. Chutes, socos, gritos e ameaças abriram caminho para o terror que iria enfrentar: submetida e subjugada à violência do bando, a jornalista viu uma arma ser encostada em sua cabeça para, em seguida, um marginal rodar a caixa de bala e acionar o gatilho duas vezes em uma roleta-russa impiedosa. Enquanto isso, outros cinco bandidos reviravam a casa atrás de câmeras escondidas ou escutas. Nada encontraram, mas saquearam pertences e dinheiro da equipe.

Sozinha e apavorada, a repórter ainda seria vítima de novas barbáries: teve a cabeça enfiada numa sacola plástica e foi obrigada a descer as escadarias da casa alugada até chegar ao carro, onde já estavam algemados o fotógrafo, o motorista e um morador da favela que os acompanhara à festa.

Os milicianos tentaram enfiar um integrante da equipe na mala do carro, mas desistiram, pois o veículo tinha kit-gás. Algemados e feridos, os quatro seguiram amontoados no banco de trás do carro da reportagem até o cativeiro. No caminho, mais ameaças: "Nós vamos fazer vocês cheirarem cocaína e vamos jogar vocês cheios de drogas no Fumacê para que os traficantes cuidem de vocês".

O carro percorreu longo caminho e deu volta em um largo próximo a um motel. Foram buscar "a chave" do local usado para a tortura. Durante o caminho, esfregavam as armas nos rostos das vítimas e descreviam uma futura morte trágica para a equipe.

Os criminosos conversavam pelo rádio todo o tempo. Um carro seguia na frente, fazendo o que chamavam de "varredura" do terreno. Só depois do OK, o automóvel de trás seguia. Após meia hora, o cativeiro. O chão úmido de cimento grosso foi o destino dos quatro depois de uma sucessão de socos, chutes e tapas. Apesar de a equipe de O DIA tentar informar que o morador da favela nada sabia sobre a identidade do grupo, ele também foi espancado.

Os agressores controlavam a voz temendo chamar a atenção da vizinhança. Durante a tortura era possível ouvir alguém tocando clarinete nas redondezas. Uma rádio evangélica foi sintonizada para abafar o barulho do espancamento.

A execução do grupo seria decidida por um "coronel" que estava a caminho. Os espancamentos eram entremeados por longos discursos. Na ideologia torta dos bandidos, a presença na comunidade colocava em risco um relevante projeto. "Existem muitos policiais corruptos, mas nós não somos corruptos. A gente se mata de trabalhar aqui, leva tiro de vagabundo para vocês chegarem e estragar o projeto social que estamos fazendo. Nós não somos bandidos", discursava um dos milicianos com voz distorcida e inspiração nazista. A repórter perguntava: "Se vocês não são bandidos, por que estão fazendo isso?" A resposta dos seqüestradores não vinha em palavras, mas sim em socos e tapas.

O 'Coronel' chegou. Coturnos e uma calça azul de farda da PM estavam no ambiente. Também se falava na presença de um "comandante". Mais torturadores os acompanhavam. Um deles soltou sem querer uma frase mostrando que conhecia a equipe do jornal de outro ponto da favela. Neste momento, a casa tinha pelo menos 20 homens. Seriam os algozes da longa sessão de horror imposta. A covardia atingiu níveis sobre-humanos. Como nos porões das ditaduras mais sombrias, choques elétricos e sufocamentos com sacos plásticos passaram a ser aplicados até o limite do desfalecimento. Para acordar as vítimas, socos e pontapés. Para deixar o grupo ainda mais apavorado, eles foram levados para quartos separados.

A tortura também era psicológica, com os milicianos revelando detalhes sobre a vida pessoal dos reféns. Extenuados, repórter e fotógrafo foram obrigados a fornecer senha de e-mails para que fosse feita uma varredura no que havia sido passado de informação para a redação.

A descoberta dos relatórios enviados para o jornal fez com que os agressores redobrassem o castigo. Ali, eles souberam que tinham sido realmente identificados: textos e fotos mostravam viaturas oficiais do BPVE (Batalhão de Policiamento de Vias Especiais) circulando livremente na favela, homens fardados conversavam tranqüilamente com policiais à paisana... As agressões físicas e psicológicas chegaram a níveis extremos, inclusive com ameaças de morte cada vez mais constantes.

O destino da equipe só foi decidido aproximadamente às 4h, quando os seqüestradores, tal como juízes, anunciaram o veredicto: iriam libertar as vítimas. Não sem antes roubar celulares e dinheiro do grupo, agindo como reles vagabundos de rua. Às 4h30, finalmente, a equipe foi solta na Avenida Brasil.

Machucadas, humilhadas e apavoradas, as vítimas não arriscaram procurar uma delegacia para registrar queixa ou fazer corpo de delito. Havia o medo latente de que outros policiais estivessem envolvidos com o bando do Batan. Não era possível, naquele momento, saber quem estava ao lado de quem. Era o início de uma nova vida para os envolvidos. Por um lado, o alívio por estarem vivos. Por outro, com a dor e o terror marcados na memória.

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