segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

O cossaco não é mais unanimidade


Protestos sempre fizeram parte da democracia. Porém, quando se trata de um país como a Rússia, com problemas políticos de circunstâncias perigosas, de desnível na distribuição de renda e muita corrupção, faz a tensão crescer dia a dia. E, muito mais ainda, quando seu vizinho, a Ucrânia, está à beira de uma guerra civil. Ainda assim, surpreende o fôlego dos manifestantes, que num frio de muitos graus negativos, permanecem se aquecendo nas fogueiras montadas na Praça da Independência em manterem coesas suas reivindicações.
Esses protestos (na foto) tiveram início em novembro, quando o presidente Yanukovych resolveu não assinar um acordo de livre-comércio com a União Europeia. O motivo? A Rússia lhe oferecia preços menos elevados de gás, ao contrário do FMI, e mais empréstimos no valor de 15 bilhões de dólares. Na verdade, o presidente da Rússia, Vladimir Putin, sempre foi contra qualquer acordo entre um antigo país satélite da falecida União Soviética e a UE. Para o ex-agente da KGB, as chamadas “esferas de influência” ainda vigoram. Pediu em recente reunião realizada em Bruxelas que deixassem Kiev em paz. O cossaco, impassível, não faria o papel de intermediário na crise.
O final de janeiro foi marcado pela renúncia do premier Mykola Azarov e de seu gabinete em peso. Segundo Azarov, sua renúncia poderia engatilhar “uma solução pacífica” para o conflito. Um dos líderes da resistência, o ex-campeão peso pesado pelo Conselho Mundial de Boxe, da legenda Aliança Democrática Ucraniana pela Reforma, Vitali Klitschko, não aceitou o convite para ocupar o posto de vice-premier. Ele tem sido o principal e mais articulado dos opositores. Ferrenho inimigo de Yanukovyck, que o considera corrupto e nepotista. Contudo, o país ainda está dividido: é norte/oeste a favor da EU e sul/leste a favor da Rússia.
Desde o início dos conflitos e o fato de Yanukovych ter reagido com truculência à imagem de seu ídolo Putin também instilou ainda mais raiva dos manifestantes. Os titushki, provocadores pagos pelos pelo governo, criaram um clima de terror. Por sua vez, os berkuts, forças especiais, torturaram e deixaram manifestantes nus nas cidades ou em florestas glaciais.
A corrupção faz parte da política ucraniana. É notável, por exemplo, como Yanukovyck, de família pobre, que foi delinquente na adolescência, condenado por roubo e agressões, tenha tido tão rápida ascensão não somente política, mas também financeira. O presidente da Ucrânia criou um clã político chamado “A Família”. Seu filho, o odontólogo Alexandre, de 40 anos, fez uma das maiores fortunas do país. O palácio onde mora o adoentado presidente tem um terreno de 137 hectares, com campo de golfe e pista para pouso de helicóptero, de fazer inveja a muitos endinheirados. Caso ele seja derrubado, investimentos da China e da Rússia na Ucrânia, de 6 bilhões e 15 bilhões de euros, permitiriam ao presidente aumentar os salários e vencer as presidenciais de 2015.
Por trás do conflito na Ucrânia, a figura de Putin não pode ser desconsiderada. O presidente russo, que já foi unanimidade no início dos anos 2000, faz a Rússia preconceituosa, soberba, perdulária e seu povo infeliz. Agora, arrisca-se numa manobra na neve. Ele decidiu usar os Jogos de Sochi para fortalecer seu poder, que estava escapando pelo ralo. O custo da megalomania de Putin? Já ultrapassou os US$ 51 bilhões. É a Olimpíada mais cara que o planeta já teve notícia. Putin quis passar uma mensagem geopolítica inequívoca de que o Kremlin não abre mão do controle do Cáucaso.
Essa dinheirama saiu dos cofres do Estado, passaram pelo Olympstroy, a autoridade olímpica russa responsável pela execução das obras, e acabaram nas mãos das empresas responsáveis pelas obras - todas de aliados amigos do velho cossaco. Corrupção? Pode apostar que houve - e muita. Na Rússia, prestação de contas - antes, durante e provavelmente depois de Putin - é uma quimera.

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SERGIO BARRA é médico e professor
sergiobarra9@gmail.com

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