domingo, 29 de novembro de 2009

Calabar, leal à própria liberdade


Ao longo dos tempos, os homens travaram muitas guerras. E não foi diferente no início do século 17, entre holandeses e portugueses, que se enfrentaram pelo controle do Nordeste brasileiro. A colônia era um importante campo de batalha na guerra dos batavos contra o Império Espanhol.
Em 1632, o Nordeste brasileiro parece até inusitado. Era uma das frentes de batalha da "Primeira Guerra Mundial da história", segundo o historiador inglês C. R. Boxer definiu a Guerra dos 30 anos. A Holanda e a Espanha, que então controlava o Brasil através de seu domínio sobre Portugal, havia dois anos disputavam a riqueza do açúcar produzido na colônia em combates ao longo do litoral nordestino.
A luta pelas riquezas de além-mar opunha os espanhóis aos holandeses, franceses e ingleses, que defendiam a liberdade absoluta do comércio nos oceanos e não reconheciam o Tratado de Tordesilhas. O conflito era comercial e religioso. A pergunta que se faz: por que os países reformistas acatariam a decisão unilateral do bispo (o papa), o maior líder católico que não reconheciam?
Entre 1632 e 1635, com reforços vindos da Europa e a ajuda de moradores da terra, os holandeses conquistaram pontos decisivos como a Ilha de Itamaracá, a Paraíba, o Rio Grande do Norte e, por fim, o Arraial de Bom Jesus, consolidando a ocupação de Pernambuco.
Na história, dentre os colaboradores dos holandeses, destacou-se a figura de Domingos Fernandes, conhecido como Calabar, iria definir o rumo desse conflito. Integrante inicialmente das forças que tentavam impedir a conquista do território pernambucano, acabou tornando-se um eficaz colaborador dos holandeses. Seu nome passou a ser associado à traição.
Calabar foi um vil traidor da pátria, ou um patriota que via um futuro promissor na dominação holandesa? Se traidor, de quem? Dos portugueses, dos espanhóis, dos latifundiários luso-brasileiros da época? Da religião católica? Afinal, não havia como ser traidor de um Brasil que não existia.

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“Desde os bancos de escola, nos ensinam que Calabar foi um traidor. Será? Isto diz nossa história oficial que defende a colônia portuguesa. Para os holandeses, Calabar foi um herói.”
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Calabar nasceu em Porto Calvo, Alagoas, na primeira década do século 17, filho de pai português desconhecido e de mãe indígena ou mameluca, Ângela Álvares, que sempre escondeu do filho a identidade de seu progenitor. Desenvolveu em consequência seu primeiro complexo de inferioridade: ele detestava o pai, que deixou a mãe em dificuldades.
O primeiro ato de "traição" de Calabar foi o ao ataque a Igaraçu, importante povoação de Pernambuco na época, para onde os lusos levaram parte de seus pertences. O saque foi terrível, e quem conduziu os batavos pelos melhores acessos foi Calabar. A estocada feriu profundamente o governador Matias de Albuquerque, seu antigo chefe, que, no entanto, resolveu tentar recuperá-lo e reconquistá-lo para a causa dos portugueses, oferecendo-lhe o perdão, honrarias e vantagens pecuniárias. Não conseguiu nada. A traição estava consumada.
Com a importante ajuda de Calabar, os batavos fizeram muitas incursões pela vizinhança, causando tremendos estragos aos portugueses. Correu muito sangue por culpa de Calabar. Em 1633, conduziu os holandeses para conquistar Filipéia (atual João Pessoa) e o forte de Santa Catarina, chegando até o forte dos Reis Mago, ao lado de Natal, Rio Grande do Norte. Depois atacaram o Sul sempre com ajuda de Calabar, Chegando até Santo Agostinho, que oferecia um porto protegido aos portugueses para receberem reforços e enviar açúcar para Portugal. E muitas outras conquistas.
O domínio holandês no Nordeste brasileiro durou 24 anos (1630-1654), e Calabar participou apenas da primeira fase de implantação (1632-35), durante a qual ele ajudou a consolidar o poder dos holandeses, até ser preso, submetido a um tribunal militar e condenado a ser enforcado e esquartejado, o que aconteceu no dia 22 de julho de l635.
Dizem que traição é uma atitude cotidiana, aliás, implícita na própria colocação do problema: defender Portugal ou defender a Holanda significava uma traição a um país que não existia (era colônia). De toda essa desordem, restou um bode expiatório: Calabar. Desde os bancos de escola, nos ensinam que Calabar foi um traidor. Será? Isto diz nossa história oficial que defende a colônia portuguesa. Para os holandeses, Calabar foi um herói. Na verdade, ao contrário de muitos delatores ou mercenários, Calabar fez uma opção.
A história desse personagem foi retratada na peça "Calabar: o elogio da traição", de Chico Buarque e Rui Guerra: uma nova leitura do mito traidor, feita para contestar a ditadura em 1973, e que acabou censurada pelo regime militar, no triste período dos anos de chumbo.

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SERGIO BARRA é médico e professor
sergiobarra9@gmail.com

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